Tendências e debates
Ao cobrir pautas científicas com furos e grandes manchetes, o jornalismo teria caído num vício de precipitação sensacionalista?
Depois de 20 anos de busca frenética, o Centro Europeu de
Pesquisa Nuclear (CERN) anunciou que dois experimentos do Grande Colisor
de Hádrons (LHC) encontraram “uma nova partícula com massa entre 125 e
126 GeV” (entenda aqui). Como esta partícula tem grandes chances de ser a
peça que faltava para completar o Modelo Padrão das partículas
elementares, o bóson de Higgs, a imprensa se apressou em tirar
conclusões espetaculares e definitivas. O frenesi em torno de
descobertas científicas não é de hoje; como já havia acontecido antes
com a aceleração do universo e dos neutrinos, a mídia não hesitou em
falar em “revolução”. No que diz respeito à ciência em geral, a
cobertura jornalística teria caído num vício de precipitação
sensacionalista?
“Há a questão da disputa por espaço com o hard news, já que o
número de páginas é limitado, e de síntese, uma vez que os títulos
muitas vezes exigem simplificações meio grosseiras, mas são dificuldades
técnicas típicas do jornalismo em geral, os ‘ossos do ofício’, que
podem ser resolvidos de modo melhor ou pior, e onde cada caso é um
caso”, avalia escritor e jornalista especializado em ciência Carlos
Orsi. “Isso, historicamente. Em tempos recentes, uma filosofia
imediatista de serviço — tudo o que se publica tem de ser útil para o
leitor agora, e útil num sentido bem estrito: ajudá-lo a ganhar
dinheiro, a fofocar com o colega ou a se sentir melhor — andou tomando
conta das redações, mas isso se reflete menos na qualidade da cobertura
do que em seu tamanho: a tendência é essa miopia fazer não que a
cobertura piore, mas simplesmente que desapareça”.
Orsi acredita que, historicamente, os meios impressos mais
tradicionais conseguem dar à ciência o devido respeito – inclusive na
cobertura da busca ao bóson de Higgs. Os meios de radiodifusão e online,
no entanto, sofreriam com a disputa frenética pela audiência.
“Isso gera uma forte pressão para que se force a barra e se busque o
sensacional, o chamativo, o que vai manter o dedo do controle remoto
parado e o do botão do mouse, clicando”, lembra o jornalista. “Nesse
caso, importa menos divulgar a notícia científica relevante e mais
encontrar um dado qualquer capaz de chamar a atenção do leitor ou
espectador. Existe todo um gênero jornalístico, o do fait divers,
voltado para a cobertura de ocorrências bizarras ou exemplares, e no
mundo online e televisivo a ciência está sendo reduzida a uma subseção
dos fait divers”.
A Babel dos jargões
Outro problema da cobertura jornalística, segundo o físico Daniel
Bezerra, é que cientistas e jornalistas não falam a mesma língua, pois
vivem em realidades muito diferentes. Existem aqueles espíritos
desbravadores que tentam construir pontes entre os dois campos, mas em
geral há uma riqueza de detalhes sobre o processo e as descobertas
científicas que se perdem na tradução. Ou seja, muitos cientistas não
conseguem se expressar claramente em termos leigos e muitos jornalistas
não resistem à tentação de correr atrás de uma analogia simplificadora,
que não raro confunde mais do que explica.
“Explicar e comentar as recentes descobertas da física vêm se
tornando tarefas cada vez mais ingratas”, diz Bezerra. “É fácil falar
das Leis de Newton em termos leigos, porque a nossa experiência
cotidiana é regida pelas três leis de Newton. Quando precisamos falar de
regimes mais complexos – implicações da Teoria da Relatividade Geral,
por exemplo, ou por que se propôs a existência de uma tal ‘energia
escura’ – tudo fica mais difícil porque faltam exemplos concretos em que
possamos nos calcar; não há um acontecimento da vida cotidiana que
possamos apontar e dizer ‘é isso que estou pesquisando’. Tudo é muito
abstrato até para os cientistas, quem dirá para os não-iniciados”.
O sensacionalismo da imprensa resulta em “iscas” para atrair o
público mais do que informá-lo, como o uso equivocado do termo
“partícula de Deus”. O termo, aliás, usado à exaustão pela imprensa,
incomodou muitos cientistas.
“Começou como uma piada do físico Leon Lederman em seu livro de divulgação científica The God Particle: If the Universe Is the Answer, What is the Question?”,
lembra o físico Daniel Bezerra. “O problema é que a piada saiu do seu
contexto original, e a expressão foi adotada por um monte de gente que
não entendeu nada da ciência envolvida, para não falar dos
fundamentalistas religiosos que se ressentiram do uso indevido do nome
de Deus. Desde então os cientistas vêm tentando evitar esse termo, mas o
fato é que ele já caiu no imaginário popular”.
Além de dar ideias erradas e criar expectativas infundadas no
público, a busca por resultados que gerem notícias bombásticas e grandes
manchetes corre o risco de pautar as pesquisas científicas. Imagine se,
em busca de manchetes, os próprios cientistas comecem a orientar seus
projetos para atrair holofotes.
“Há sinais de que isso acontece em alguns casos, principalmente nas
humanidades”, alerta Orsi. “Recentemente, o site de uma associação de
estudos de psicologia publicou um artigo criticando a onda de estudos
“definitivos” e “revolucionários” que pareciam feitos sob medida para
ganhar manchetes. Já houve várias retratações de trabalhos desse tipo.
Num aparte, eu realmente acho que o jornalismo de ciência sofre de um
certo complexo de vira-lata nessa questão de “justificar-se para o
leitor”. Nenhum repórter de economia gasta parágrafos a fio para
explicar por que o leitor deveria se importar com os números da balança
comercial, por exemplo”.
Já Bezerra lembra que, com o fim da Guerra Fria e, consequentemente,
do ímpeto em desenvolver novas armas nucleares, a “Big Science” teve que
arrumar outra maneira de se promover.
“Os países desenvolvidos estavam cada vez menos inclinados a gastar
bilhões para construir máquinas cada vez mais sofisticadas para
descobrir coisas cada vez menos compreensíveis pelo público
contribuinte. Apelos ao amor pelo conhecimento e ciência pura encontram
ouvidos cada vez mais surdos. Restou o sensacionalismo, uma tática que
todo cientista sério abomina usar, mas que de vez em quando se mostra
útil para ‘vender o peixe’. Cabe ressaltar que nem todo mundo usa esse
expediente (de fato é raro encontrar quem realmente faça isso). O caso
dos neutrinos superluminais, a propósito, ilustra muito bem o contrário:
os diretores do OPERA não sabiam como interpretar os dados que seus
instrumentos indicavam e, diante desse enigma, escolheram publicar e
perguntar à comunidade científica o que estava errado – já que eles
mesmos se consideravam incapazes de entender o que acontecia. Meses
depois descobriu-se que um cabeamento mal-feito induziu um erro
sistemático na medição da velocidade de todos os neutrinos – e, numa
demonstração de integridade científica, os diretores do OPERA pediram
demissão. Mas isso você não deve ter visto no hard news, apenas na imprensa especializada”.
Serve pra quê?
Para diminuir o fosso entre pesquisas científicas com propósitos e
resultados aparentemente abstratos e o grande público, há também uma
tendência da mídia em dar a assuntos complexos uma dimensão prática, uma
conexão com o mundo real.
“Imagino que seja frustrante para os pesquisadores verem seu trabalho
bastardizado desse jeito, e decepcionante ver como a noção de ‘mundo
real’ da mídia é limitada (partículas elementares, afinal, são os
componentes fundamentais do mundo real)”, lamenta Orsi. “Mas isso não é
uma exclusividade da cobertura científica — cada vez que um novo
programa de TV estreia, por exemplo, a audiência do primeiro dia logo é
trombeteada como formidável ou decepcionante. A mídia, principalmente
rádio, TV e internet, depende da contínua criação e destruição de
expectativas, de ansiedades e frustrações. É o que mantém as pessoas
ligadas”.
O fato é que o processo científico não é como se vê no cinema, em que
um único indivíduo tem um insight brilhante e revoluciona o mundo com
uma invenção ou descoberta incrível, lembra Bezerra.
“A coisa de verdade é muito mais lenta, cega e trôpega. De fato, Carl Sagan certa vez escreveu que todo mundo tem uma grande sede de conhecimento e um grande entusiasmo em descobrir coisas novas; mas muitos preferem o conforto das certezas prometidas por mistificadores do que as dúvidas incômodas da ciência de verdade. Ao fim e ao cabo, ciência dá muito trabalho para fazer, e nem sempre acontece o que você esperava. Isso é muito irritante para as plateias imediatistas de hoje”.
“A coisa de verdade é muito mais lenta, cega e trôpega. De fato, Carl Sagan certa vez escreveu que todo mundo tem uma grande sede de conhecimento e um grande entusiasmo em descobrir coisas novas; mas muitos preferem o conforto das certezas prometidas por mistificadores do que as dúvidas incômodas da ciência de verdade. Ao fim e ao cabo, ciência dá muito trabalho para fazer, e nem sempre acontece o que você esperava. Isso é muito irritante para as plateias imediatistas de hoje”.
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Fonte: http://opiniaoenoticia.com.br/opiniao/a-particula-de-deus-e-outros-sensacionalismos-da-midia/
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