terça-feira, 3 de novembro de 2009

Animais literários

CECILIA GIANNETTI



Há bastantes outras coisas que se pode fazer do que escrever um livro, mas se a vontade for forte, é aconselhável ler algum

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TINHA acabado de me sentar num banquinho do Campo de Santana a aguardar, em sereno transe psicótico, pelo ApoCalipso que, rebolativo, nos engolirá, quando uma cotia sussurrou, com ar de mistério, segredo que no íntimo parecia desejar que muita gente viesse a conhecer através deste jornal:

- Psiu, escrevi um compêndio de minhas confissões e gostaria que a srta. escritora passasse este original a algumas editoras, por obséquio. Anote o número do meu celular e também meus Twitter, Gtalk, MSN, Facebook e Myspace, por favor...

Com o pedido senti meu corpo gelar, apesar dos 29 graus que castigam o centrão do Rio -chova ou faça sol, sobe do asfalto a quentura e os carros tediosamente engarrafados na avenida exalam aquela fumaça que distorce suas formas, como se as superfícies dos veículos dançassem molengas.

O fantasma de d. Pedro 2º estava atrasado, havia tempo para improvisar uma palestra à cotia e também aos demais animaizinhos e transeuntes que já se acumulavam em torno do banco de praça. Cada qual se aproximava tentando imprimir modéstia aos seus focinhos, trazendo uma primeira versão não revisada de suas respectivas autobiografias debaixo do braço. Ou da patinha, ou da asinha -variando de acordo com a espécie de bicho que esperava ter comigo uma entrevista.

- Bicharada do meu Brasil! -Entoei- Há tanta coisa por aí pra distrair a gente! Contar suas histórias, pra quê? Se o senhor, a senhora ou o seu animal de estimação por acaso sofrer do cacoete de autor, a pequena lista a seguir contém alguns procedimentos pra curar de vez a comichão literária:

1 - Sentar-se em um formigueiro;

2 - Roubar um banco;

3 - Aprender a fazer rabanada sem ovos;

4 - Etc. (O etc. é uma opção sempre subestimada. Dizem dele que tem significado hermético, ou um tanto quanto vazio, dependendo do grau de estupidez de quem profere o etc., mas a verdade é que sua riqueza de sugestões implícitas pode nos manter ainda mais ocupado tentando adivinhá-las do que qualquer outro procedimento anticomichão literária). Por tudo isso que acabo de colocar entre os parênteses, levemos sim em consideração o digníssimo etc.

5 - Depilar a virilha com durex.

Há bastantes coisas neste mundo que se pode fazer, com melhores resultados e com maior satisfação, do que escrever um livro. Porém, se a vontade de escrevê-lo for tão forte que não se possa saciá-la com quaisquer dos passatempos acima sugeridos, é aconselhável que o candidato a Autor leia algum livro -qualquer livro serve- antes de escrever o seu.

Se calhar de ler um livro bastante ruim, talvez a experiência lhe sirva para que aprenda como não se deve escrever. Se o livro for incrível, talvez aprenda a ser modesto e ambicioso ao mesmo tempo, além de obter a disciplina que pode levá-lo a escrever razoavelmente.

Mas chega de tentar enganá-los com conselhos. Desejo apenas defender meu emprego, ao distribuir dicas a cotias e aspirantes a escriba. Afinal, quem garante que eu também não seja uma cotia, digitando este texto a delicadas patadas? Evidências que provem tal hipótese hão de sobrar.

Investiguem-nas: alguns dos mais recentes contos e comentários inéditos desta cotia (últimos inéditos porque, de hoje em diante, todos os meus textos serão muitíssimo conhecidos) os leitores poderão conferir no endereço: http://apocalipso.folha.blog.uol.com.br.

E neste instante o fantasma de d. Pedro 2º aponta à entrada do Campo de Santana, trazendo debaixo do sovaco fardado calhamaço de originais para averiguação.

Fonte: Folha de São Paulo, 03/11/2009
http://www.twitter.com/giannetti

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