terça-feira, 3 de novembro de 2009

Temor e tremor

JOÃO PEREIRA COUTINHO

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Medito em silêncio respeitoso; por que o mundo enlouqueceu à minha volta?
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ALMOÇO COM um colega de trabalho no centro de Lisboa. Subitamente, o celular dele dá sinais de vida. Ele atende. Reparo que fica pálido. Levanta-se, grita pelo celular um "já-estou-a-caminho" que me faz levantar também e sai do restaurante. Pago a conta, entro no carro com ele. Temo o pior: um familiar atropelado, sequestrado, assassinado.

Falso alarme: o filho, uma criança com sete anos, apresentou sintomas de febre no colégio. E dores de cabeça. E alguns vômitos. As salas de aula foram imediatamente evacuadas, e a criança, aterrorizada com os procedimentos, foi isolada em compartimento à parte, onde só se entra com máscaras e, imagino, uma daquelas vestimentas que os astronautas usam na superfície lunar. "A professora suspeita de gripe A", diz-me ele, com a voz rouca, a ameaçar pranto.

Chegamos ao colégio, ele sai do carro, corre para a sala em que está o filho. Antes de entrar no leprosário, entregam-lhe uma máscara. Ele põe a máscara, agarra a criança -que, entretanto, adormeceu de tanto chorar- e a leva para o carro. Mas pergunta primeiro: "João, preferes ir de táxi para não haver perigo de contágio?".

É nesses momentos que uma pessoa relembra os pensamentos estoicos de Marco Aurélio e responde: "Não é preciso. Eu vou sobreviver".

A criança dorme. O pai, ainda de máscara, ameaça não dormir nas próximas noites. E eu, sem máscara (mas com a úlcera dilatada), medito em silêncio respeitoso. Por que motivo o mundo enlouqueceu à minha volta?

A resposta é mais sinistra do que imaginam. Todos os anos, a gripe sazonal ataca com ferocidade. O vírus, que potencia outras complicações de saúde, mata meio milhão de pessoas no mundo inteiro. Um verdadeiro massacre que, estranhamente, não faz manchetes nos jornais como a gripe A. Motivos?

A resposta mais evidente seria dizer que a gripe A é incomparavelmente mais mortífera do que a gripe sazonal que nos visita todos os anos.

Infelizmente, a resposta estaria errada: a julgar pelo número de vítimas no hemisfério Sul, onde o inverno já veio e já foi, as vítimas da gripe A foram bastante inferiores às vítimas anuais da gripe sazonal.

Só na Austrália, informa a edição corrente da revista "The Atlantic", morreram mil pessoas. Todos os anos, morrem na Austrália 3.000 com a gripe normal.

Se assim é, repito, como explicar a histeria?

Com uma única palavra: juventude. Afirmei que a gripe sazonal mata meio milhão de pessoas todos os anos. Mas essas 500 mil almas são, na esmagadora maioria dos casos, velhos e, é claro, doentes crônicos, tudo gente que não entra na contabilidade midiática. Velhos e doentes são, por assim dizer, "dispensáveis".

A gripe A altera o cenário ao atacar e, por vezes, matar gente saudável e jovem. As preocupações médicas são compreensíveis e respeitáveis: uma pandemia de gripe A seria dramática. Mas a histeria global é sobretudo ideológica, não médica: ela explica-se pelo simples fato de a gripe A não respeitar a "saúde" e a "juventude", os dois únicos deuses que o mundo moderno respeita e louva com verdadeiro fervor pagão.

Se a gripe A se limitasse ao seu trabalho habitual, ceifando apenas velhos e doentes, não haveria um espirro nos jornais. E a criança? A criança sobreviveu.

Desde logo porque não era gripe, muito menos a temível A. "Provavelmente foi uma virose", disse-me o pai, dias depois, aliviado. Sorri. "Virose" é a palavra favorita dos médicos para explicarem o que não conseguem explicar. Mas depois acrescentou: "Seja como for, vou vacinar a família inteira contra a gripe A. Nunca se sabe".

Precisamente: nunca se sabe. A frase, aliás, resume o estado da arte sobre o assunto. No referido número da revista "The Atlantic", alguns especialistas mundiais levantaram dúvidas sobre a eficácia da vacinação. Um exemplo: em 2004, houve uma quebra de 40% na produção da vacina. Paradoxalmente, o índice de mortalidade desse ano ficou rigorosamente na mesma.

Pior: em 1989, apenas 15% da população americana e canadense acima dos 65 anos optava pela vacina; hoje, a percentagem subiu para os 65%. Paradoxalmente, o número de mortos também subiu.

Preferi não falar mais sobre o assunto. Ainda a recuperar do primeiro susto, talvez o meu colega não se recuperasse de um segundo. E para quê? Se a vacina traz segurança, ou uma ilusão de segurança, a verdade será sempre um luxo a que não nos podemos permitir.

Fonte: Folha de São Paulo, 03/11/2009

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