quarta-feira, 4 de novembro de 2009

O que é rezar?


Paulo Ghiraldelli*



Filósofos formados na tradição laica e iluminista, como eu mesmo, tendem a não querer entender aquilo que as pessoas de outras tradições, que em geral são religiosas, falam quando evocam o “poder da oração”.

O filósofo deveria estar aberto às manifestações da vida - todas. Deveria ter uma facilidade imensa de entender a expressão “o poder da oração” e, ao mesmo tempo , teria de ser capaz de compreender e assimilar o próprio ato de rezar, de orar. O que faz o filósofo da tradição iluminista não conseguir entender a prática da oração?

A oração é vista pelo filósofo como uma tentativa do religioso de “falar com entidades supranaturais” e, portanto, é interpretada como algo que escapa da alçada de uma perspectiva da ciência moderna, que em geral atrela o pensamento ao naturalismo da filosofia iluminista. Mas a oração é isto mesmo? Ou podemos interpretá-la de outra maneira?

Se dizemos que a oração não é uma “fala com Deus” ,sentido literal do termo, e que se trata de outra coisa, então o filósofo quer saber “que outra coisa” é isso. Não raro, aguarda a resposta, qualquer que seja ela, para então dizer que se trata de uma prática que “favorece o irracionalismo”. Mas o irracionalismo não está na religião ou na oração, e sim na falta de entendimento do que é a religião, do que é a oração - algo fora do campo do jogo do verdade e do falso, ainda que muitos religiosos, erradamente, queiram colocá-la no âmbito de tal jogo.

A religião em que Deus é confundido com a Verdade e vice-versa é aquela na qual se criam exclusões. Não por conta de Deus (!), mas por conta da Verdade. Verdade é um termo que devemos usar exclusivamente como predicado de enunciados. No caso, trata-se daqueles enunciados que são falsificáveis, como os filósofos da ciência – Popper à frente – nos ensinaram. Não há como falsificar a frase “a história do homem é a história da luta de classes”. Portanto, uma frase desse tipo, pode ser válida, mas não pelos critérios de se dizer “verdadeiro” (ou “falso”) a ela. O mesmo vale, por exemplo, para “Deus existe”. Não é verdadeira nem falsa, é da ordem do gostar, do tomar e do usar.

Assim, a religião e, no interior dela, a oração, não são práticas da ordem do verdadeiro e do falso. Como também a poesia não o é. Nem qualquer outra coisa que fomente a esperança a partir de alusões, indícios, jogos metafóricos, etc. A oração é isso: um tipo de diálogo onde um fio tradicional de palavras é emitido e, na emissão deles, quem os emite renova seus laços com sua mãe e seu pai, com seus avós, com a tradição, a comunidade, a sua infância e as coisas boas que passou e que viu outros passarem. Nesse sentido, a oração enche de esperança aquele que a pratica, de modo que ele pode estar certo de que “falou com Deus”. “Falar com Deus” ou “orar” não é algo psicológico ou biológico ou sujeito a outro “lógico” qualquer. “Falar com Deus” ou “orar” é algo do âmbito do ... falar com Deus – nada mais!

A oração não é um pedido – quem reza assim, pedindo e pedindo, não vê os efeitos da oração. Ela também não é um fio de palavras repetidas, como que em uma penitência de escola. Quem reza assim está apenas seguindo passos alheios, sem se envolver com o que faz e, nesse caso, não vive o que é o gostoso da oração. A oração é algo que é aprendido na infância e se faz como elo entre dois mundos: o mundo do coração, das esperanças, do bem querer – tudo isso de um lado –, e do outro lado o mundo do alimento, dos raios de felicidade, da amizade e do amor. Orar é, em grande medida, pronunciar palavras aprendidas na infância que nos fazem “estar com Deus”, ou seja, “voltar para casa”. Voltar para casa e estar com Deus, todos sabemos, são sentimentos muito próximos. Quem diz acreditar em Deus está apenas dizendo que acredita poder voltar para casa.

Reza melhor quem aprendeu a rezar na infância. Por isso, se mudamos de religião e aprendemos novas práticas religiosas, nossa oração fica sem valor durante muito tempo. É muito difícil mudar de religião. É muito difícil abandonar Deus, isto é, o lar dos próprios pais, e ir para uma casa alheia. Isso pode ocorrer, mas em geral, quando acontece, se dá de uma forma pouco eficaz com aqueles que nunca tiveram Deus naquilo que chamaram de “a casa dos pais”. As religiões sabem disso,. Por isso aconselham mesmo que as crianças sejam iniciadas na oração por volta dos seis, sete ou oito anos. As religiões sabem bem o quanto alguém educado em uma religião não consegue dar o salto para outra, uma vez que voltar para casa é voltar para aquela casa e não outra. Nessa idade, na infância, quase pré-escolar, de fato, as crianças estão tendo claro a relação da casa dos pais com o mundo. E nada melhor, nada mais confortante e energizante para uma criança saber que ali, na casa de seus pais, é possível “contar com Deus”. Se o clima é este, então, para o resto da vida, a pessoa está aberta ao “poder da oração”. Pois o poder da oração é o de nos colocar, ainda que somente em pensamento, de volta para a casa – a nossa casa. Aliás, Jesus, que entendia bem o que era religião e oração, fazia essa relação claramente, entre orar, falar com Deus e voltar para a casa do pai.

Orar não é querer mover montanhas com palavras e pensamentos, sem intermediários. Isso seria um “abracadadra”. Orar não é “pagar promessa” ou pagar qualquer coisa. Isso seria uma mera relação comercial, posterior historicamente à religião. Orar não é se envolver com rezas coletivas onde todo conteúdo espiritual se perde. Isso, em geral, é falta de amizade, é solidão social, que leva as pessoas ao desespero. Orar não é se submeter ao poder de uma entidade qualquer, muito menos se submeter a um padre ou pastor. Isso, de se submeter, está longe do que é a o ação. Orar não é se submeter a nada. Orar é simplesmente pronunciar palavras que nos trazem de volta ao lar, para saber o que foi a felicidade ali, e então, retornar com ela nas mãos para oferecer aos outros, aqueles por quem oramos naquele momento. Orar é um dom. Mas, em geral, orar é um dom de quem teve lar, família, aconchego na infância - quem teve Deus, diria o religioso, quase que tão metaforicamente quanto eu, filósofo, acabo dizendo.

Se o filósofo não tem esse dom, deveria ao menos ter o dom de procurar entender a prática milenar da oração. Então, começaria a ser realmente filósofo.

*Paulo Ghiraldelli Jr. - Filósofo. Professor. Escritor.  www.ghiraldelli.pro.br

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