Com uma caligrafia caprichada e uma letra miúda, o poeta Manoel de Barros prepara à mão um novo livro que promete ser sua obra-prima, coroando os quase 93 anos de tranquila trajetória
A vitalidade do poeta Manoel de Barros é invejável. Próximo dos 93 anos (completa em dezembro) e apesar das dificuldades auditivas e de visão, ele escreve mais um livro. O teor ainda é um mistério mas, segundo sua primeira e mais fiel leitora, a mulher Stella, trata-se de sua obra-prima. "Manoel escreve à mão, como de hábito, com uma caligrafia muito particular", comenta Pascoal Soto, diretor editorial do Grupo Leya do Brasil, que contratou a obra do poeta mato-grossense - serão 17 títulos e esse inédito, a partir do próximo ano. "Quando recebo correspondência do Manoel, minha pulsação aumenta: são os originais de uma poesia inigualável."
De fato, como há muito trabalha na edição da obra do poeta, Soto acumulou um verdadeiro tesouro de papéis rabiscados com uma letra miúda e linhas caprichadas. Uma linguagem artesanalmente construída, sem se ater a convenções gramaticais ou sociais, mas sempre em busca da simplicidade. Fazendeiro aposentado, Manoel de Barros tornou-se, com o passar dos anos, um cultor da palavra - leitor dos sermões do padre Vieira, hábito que o ensinou, ainda jovem, a admirar a formação e utilização das palavras, ele se habituou a consultar dicionários etimológicos quando criava seus versos simples mas recheado de encanto e fantasia.
O trabalho, atualmente, é mais moroso, visto o prejuízo físico provocado pela idade. Mas Manoel continua com a mente livre como a de uma criança, como mostra na seguinte entrevista, também concedida via bilhete.
O Manoel de Barros que surge da poesia não é o mesmo daquele pessoa física, em carne e osso. Quem é o verdadeiro Manoel de Barros?
Sim, somos dois. Um é biológico, outro é letral. Ambos somos verdadeiros. Um é de sangue. Outro é de palavras. O de sangue é comum: come, bebe água e até quebra copos. O ser letral gosta de fazer imagens pra confundir as palavras. E gosta de usar palavras pra destroncar as imagens. Tipo assim: eu vi um passarinho pousado no muro da tarde. As palavras servem para me enganar e para enganar os outros. Quem escreve sobre si mesmo procura sua própria glória, disse Cristo. Eu procuro. Não sei me pular.
O sentimento de pertencer a um mundo à parte faz bem ou mal aos escritores?
A mim só faz bem. Mas eu não fico em mundo à parte. Sou muito egoísta e narcisista. Meu mundo sou eu em carne e letras. Sou o que produzo e o que não consigo produzir. Sofro um pouco nessa parte de não poder produzir.
O senhor ainda considera seu primeiro livro, Poemas Concebidos Sem Pecado, o seu melhor? Por quê?
Penso que por ser o meu primogênito informei algum dia que o meu primeiro livro é o meu melhor livro. Acho que foi uma tirada de amor. Gosto do meu primeiro livro por que ele sabe mais da minha infância do que os outros.
A palavra está acima de tudo?
Eu tenho pela palavra a mesma fascinação que a lesma tem pelas pedras. E que os lagartos têm pela solidão das pedras.
As palavras são perigosas?
Pra mim todas são amáveis. Podem me trair, mas isso é do nosso mundo. A gente precisa se vigiar ao escrever. Não podemos, ao escrever, abandonar o canto, a harmonia letral, etc. Não podemos desprezar os gorjeios das palavras.
O senhor escreveu certa vez: "O artista é um erro da natureza." Existem erros perfeitos?
Os gênios são erros perfeitos da natureza. Botei como erro porque os outros somos nós.
O senhor sempre gostou de escrever à mão. A escrita é também aquilo com que se escreve?
Eu sou minha imaginação e meu lápis. Quando o lápis acerta um erro, ele percebe e grita por uma borracha. Visto que eu seja atrasado por não usar computador.
O escritor português António Lobo Antunes disse que sente dificuldade cada vez para escrever, pois ele teme desapontar os leitores que acreditam nele. O mesmo se passa com o senhor?
Acho normal que a gente queira aparecer como é.
Coletânea
Quando as aves falam com as pedras e as rãs com as águas - é de poesia que estão falando.
No fim da tarde, nossa mãe aparecia nos fundos do quintal: Meus filhos, o dia já envelheceu, entrem pra dentro.
A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio do que do cheio. Falava que os vazios são maiores e até infinitos.
Poesia é voar fora da asa.
A maior riqueza do homem é a sua incompletude.
Quando o mundo abandonar o meu olho.
Quando o meu olho furado de beleza for esquecido pelo mundo.
Que hei de fazer.
Reportagem de Ubiratan Brasil - Estadão, 04/11/2009
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