quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Quase humano

Conceição Freitas*

Fazia dias que eu andava intrigada com um objeto parecido com uma almofada, mas com acabamento, espessura e textura de colchão, que está à venda em lojas de móveis, eletrodomésticos e colchões. Há dois formatos: o redondo, pouco menor que a copa de um guarda-chuva, e o retangular, mais ou menos do tamanho de um colchão de berço. Fui informada, finalmente, que se trata de colchões para cães.

A humanização dos cães é um dos delírios da vida contemporânea. A indústria pet cresce no Brasil com a ferocidade de um pittbul. Já existem fraldas para cães, chocolates para o paladar canino, joias para as coleiras cachorras, bolsas louis vuitton para transportar o au-au. Quando vi o colchão desenhado especialmente para quem late, achei que aí já era demais.

O cão vem sendo humanizado na proporção inversa à desumanização do homem. Ao mesmo tempo em que nossos olhos se acostumaram com a indigência dos habitantes das ruas, ficaram completamente vulneráveis ao menor espirro canino. Vejam o caso da Vera, que trocou o emprego numa casa com um casal de filhos para trabalhar no emprego dos sonhos: na casa de uma patroa que vivia sozinha, trabalhava fora, quase não almoçava em casa e tinha uma cadelinha.

Vera só não foi avisada de que Dengosa (nome fictício) era a princesa da casa. Vera não podia ir embora antes de a patroa chegar, porque Dengosinha não podia ficar sozinha. Vera tinha de contar à patroa o que Dengosa havia comido, o que tinha feito durante o dia — ela bebeu água, fez xixi, fez cocô, cocô mole ou cocô duro?

O salário era bastante razóavel, mas Vera começou a se sentir incomodada com os cuidados que tinha de dedicar ao bebê de quatro patas da patroa. Mãe de três filhos, Vera deixava suas crianças com a vizinha para passar o dia paparicando uma cadela. Pediu demissão e agora trabalha numa casa com três endiabrados e um cão. Mas lá gente é gente e bicho é bicho.

A humanização dos bichos domésticos parece ser o modo que o humano encontrou para se lembrar de sua própria humanidade e da dimensão de onde veio, a da natureza, das matas, dos rios, dos latidos, miados e grunidos de um tempo ancestral que não existe na consciência, mas persiste numa saudade silenciosa e remota. Somado a isso, a desconfiança que passamos a ter uns dos outros, a dificuldade de lidar com outro humano que nem a gente, está nos distanciando da nossa espécie e nos aproximando perigosamente dos cães.

Mas o humano continua humanamente imperfeito. ONGs dedicadas à proteção de animais denunciam um outro tipo de desvio no relacionamento dos homens com os cachorros: do mesmo modo que são paparicados, são abandonados. Cães velhos e doentes são largados na rua — em todas as classes sociais. Cães que já não cabem mais nos projetos dos donos são igualmente abandonados.

Cães e gatos escondem segredos inexpugnáveis: não falam, não cantam, não tocam piano, não criam obras de arte, não transformam a natureza, não são humanos, portanto. Mas são afetuosos, fiéis, intuitivos. E são leais à própria espécie, coisa que somos cada vez menos.

*Colunista do Correio Braziliense.
http://www.correiobraziliense.com.br/impresso/ 04/11/2009

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