Escritores revelam detalhes de seu processo criativo e confessam passar horas diante de páginas em branco e ter dificuldades com o trabalho diário.
Richard Powers fica deitado o dia todo enquanto dita seus romances para um laptop com programa de reconhecimento de voz. Junot Diaz, autor do vencedor do Pulitzer "A Fantástica Vida Breve de Oscar Wao", fecha-se no banheiro e, com o bloco de anotações equilibrado na beirada da banheira, escreve passagens complicadas de seus livros. Hilary Mantel, cujo drama sobre a dinastia Tudor "Wolf Hall" concorreu ao Man Booker Prize deste ano, entra debaixo do chuveiro quando fica sem ideias. "Não sei dizer o número de páginas que tenho com marcas d'água", diz.
Uma safra vigorosa de livros de alguns dos maiores nomes da literatura está em fase de lançamento. Kasuo Ishiguro, Orhan Pamuk e Richard Powers, entre outros, estão com novos títulos. Nos bastidores, muitos desses escritores afirmam ter dificuldades com o trabalho diário, passando horas solitárias diante de páginas em branco. A maioria tem opinião similar sobre obstáculos comuns: a demora, o bloqueio criativo, o medo do fracasso e o poder de desviar a atenção da internet.
Poucos escritores ficam irritados diante da pergunta inevitável: como escrevem? Richard Ford não quis revelar. Explicou que esse é o tipo de pergunta que torce para que ninguém faça após leituras e palestras. Outros revelam seu modo de escrever com detalhes: Anne Rice, por exemplo, usa a fonte Courier 14. Leia, a seguir, sobre o processo criativo de alguns dos mais importantes autores contemporâneos.
Michael Ondaatje - A mídia preferida do vencedor do Booker Prize Michael Ondaatje é o bloco de anotações da marca Muji, de 8,5 por 11 polegadas. Ele termina os três ou quatro primeiros esboços do livro à mão, às vezes recortando e colando, literalmente, passagens e capítulos inteiros com tesoura e fita adesiva. Alguns de seus blocos de anotações possuem páginas com quatro camadas de papel recortado. As palavras surgem facilmente para o autor - parte do trabalho é o de organizar e reescrever as frases. "Não entendo o conceito do bloqueio", diz ele, que trabalha em um romance.
Ondaatje, que começou como poeta, diz que as tramas surgem para ele como "vislumbre de pequena situação". "O Paciente Inglês" (1992) começou com duas imagens: uma de um paciente deitado em uma cama e conversando com uma enfermeira, e outra de um ladrão roubando uma fotografia de si. Às vezes ele passa por um estágio "anárquico", eliminando personagens e reorganizando cenas. "Alguns escritores sabem como será a última frase antes de começarem - nunca sei nem qual será a segunda oração", diz ele, cujo romance mais recente é "Divisadero" (2007).
Kazuo Ishiguro - Da época de adolescente até mais ou menos os 25 anos, Kazuo Ishiguro tentou, sem sucesso, ser compositor. O início de carreira o ajudou a desenvolver seu estilo narrativo econômico e em primeira pessoa, em que o narrador parece saber mais do que deixa transparecer.
Ishiguro, autor de seis romances, incluindo o vencedor do Booker Prize "Os Despojos do Dia", normalmente passa dois anos pesquisando e um ano escrevendo um romance. Como seus livros são escritos na primeira pessoa, a voz é crucial, de modo que ele faz "testes" de narradores escrevendo alguns capítulos a partir dos pontos de vista de personagens diferentes. Antes de começar um esboço, compila anotações e fluxogramas que estabelecem não só a trama como os aspectos sutis da narrativa, como as emoções e memórias de uma personagem.
A preparação obsessiva "me dá a oportunidade de tornar meus narradores dissimulados quando eles dizem uma coisa e querem dizer outra".
Ele recolhe suas anotações e escreve um primeiro esboço à mão. Faz a edição com uma caneta e, então, digita a versão revisada em um computador, onde a refina, às vezes apagando pedaços de até cem páginas.
Apesar de todo o trabalho de base, alguns romances não conseguem ter unidade, incluindo aí um que era ambientado na Grã-Bretanha medieval. "Mostrei um segmento para a minha mulher e ela disse: 'Isso é terrível. Você precisa encontrar uma maneira de eles falarem uns com os outros. Estão usando uma linguagem estúpida'."
Orhan Pamuk - O romancista turco e vencedor do Nobel Orhan Pamuk escreve a primeira linha de seus romances 50 ou 100 vezes. "O mais difícil é sempre a primeira frase - é algo doloroso", afirma Pamuk, cujo livro "The Museum of Innocence", história de amor ambientada na Istambul da década de 70, foi lançado no mês passado nos EUA.
Pamuk escreve à mão, em blocos de papel quadriculado, preenchendo uma página com a narração e deixando a página seguinte em branco para as revisões, que insere na forma de balões de diálogos. Envia seus blocos de anotações para um datilógrafo, que as devolve como manuscritos. Depois ele marca as páginas e as devolve para digitação. O ciclo se repete mais três ou quatro vezes.
Pamuk diz que escreve sempre que se sente inspirado - em aviões, quartos de hotel ou no banco de um parque. Mas não é afeito a explosões de espontaneidade no que diz respeito ao enredo e estrutura da história. "Planejo tudo."
Junot Díaz - "Acho que 90% de minhas ideias evaporam-se porque tenho uma memória terrível e porque não me empenho em rabiscar nada", diz Junot Díaz. "Assim que escrevo alguma coisa, minha mente já a rejeita."
Mas manter tudo na cabeça tem lá suas desvantagens, sendo que uma delas é escrever lentamente, diz. Ele jogou fora duas versões anteriores de seu romance "A Fantástica Vida Breve de Oscar Wao" - o equivalente a 600 páginas -, antes da versão final começar a tomar forma. Ele também é um pesquisador obsessivo. Quando escrevia "Oscar Wao", leu a trilogia "O Senhor dos Anéis", de J.R.R. Tolkien, meia dúzia de vezes para entrar na mente do protagonista de sua obra, um adolescente dominicano obeso que é obcecado por fantasia e ficção científica.
Ele sempre ouve trilhas sonoras orquestradas de filmes enquanto escreve, porque se distrai facilmente quando as músicas têm letras. Quando precisa isolar-se do mundo, vai para o banheiro e senta-se na beira da banheira. "Deixava minha ex-mulher maluca", diz.
Margaret Atwood - "Pus sua mão esquerda sobre a mesa. Pus sua mão direita no ar. Se você permanecer desse jeito o tempo suficiente, já terá um enredo", diz Margaret Atwood quando lhe perguntam de onde vêm suas ideias. Quando indagada se já usou essa abordagem, acrescenta: "Não, não preciso".
A canadense Margaret Atwood, que já escreveu 13 romances, além de poesias, contos e obras de não ficção, raramente tem bloqueio criativo. Quando as ideias surgem, rabisca frases em guardanapos, cardápios de restaurantes e páginas de jornal. Começa com a noção preliminar de como a história vai desenvolver-se, "que normalmente acaba sendo errada". Ela se divide o tempo todo entre a escrita à mão e o uso do computador. Quando um arco narrativo ganha forma, imprime capítulos e os organiza em pilhas no chão. Em seguida, começa a jogar com a ordem movimentando as pilhas.
Margaret já chegou a abandonar livros duas vezes, depois de redigir cerca de 200 páginas, uma vez na década de 60 e outra no começo dos anos 80. Conseguiu salvar uma frase de um dos livros e tirou dois contos do outro.
Numa carreira que já conta mais de 40 anos, Margaret passou do "recorta e cola" de passagens com a tesoura e a fita adesiva para as comunicações da era eletrônica. Hoje usa Twitter e blog enquanto promove seu mais recente romance, "The Year of the Flood".
Hilary Mantel - A romancista britânica Hilary Mantel gosta de começar a escrever logo de manhã, antes de articular qualquer palavra ou tomar café. Normalmente ela anota ideias e observações sobre seus sonhos. "Fico muito rabugenta quando não consigo fazer isso", afirma.
Hilary faz anotações de maneira compulsiva e sempre carrega um bloco de anotações. Frases estranhas, partes de diálogos e descrições que chegam até ela, são pregadas com taxas em um painel de 2 metros de altura que ela tem na cozinha de casa; elas continuam ali até encontrar um lugar para elas na narrativa.
A escritora passou cinco anos pesquisando e escrevendo o livro "Wolf Hall", drama sobre a dinastia Tudor ambientado na corte de Henrique VIII, que ganhou o Booker Prize e será lançado nos Estados Unidos neste mês. A parte mais complicada foi tentar ajustar sua versão aos registros históricos. Para evitar uma história contraditória, ela criou um catálogo de cartões, organizado em ordem alfabética por personagem. Cada cartão continha anotações mostrando onde uma determinada figura histórica estava em datas relevantes - como o protagonista Thomas Cromwell, conselheiro de Henrique VIII.
Certo dia, ela ficou apavorada, temendo que não conseguiria encaixar tudo o que precisava no romance. Ela então tomou uma ducha - seu ritual de limpeza da mente. "Saí do chuveiro chorando. São dois livros!", diz Hilary, que escreve a sequência que termina com a degola de Cromwell em 1540.
Kate Christensen- A escritora Kate Christensen tinha dois anos de trabalho e 150 páginas em seu primeiro romance "Mais um Drinque", sobre um ghost-writer beberrão, antes de descobrir sobre o que realmente o livro tratava - então, desfez o esboço, jogou fora várias páginas e recomeçou. O processo repetiu-se no segundo livro, no terceiro e no quarto. Com seu romance de 2009 "Trouble", história sobre duas mulheres que partem para uma aventura no México ao estilo de "Thelma & Louise", a abertura empacou. Kate, que trabalha em sua casa, no bairro de Tribeca, no centro de Manhattan, diz que passa grande parte do tempo de trabalho "não escrevendo". A maior parte das manhãs ela faz os deveres de casa, escreve e-mails e fala ao telefone, tudo para evitar o trabalho. No passado, ela jogava 30 jogos de solitária antes de iniciar a primeira sentença.
No mês passado ela começou um novo romance, intitulado "The Astral", sobre um poeta de 57 anos que mora em Greenpoint, no Brooklyn, abandonado pela mulher e que tenta tirar o filho das garras de um culto que controla sua mente. "No começo, que é onde estou no momento, há sempre um certo grau de trepidação porque a coisa ainda não tem vida própria", diz Kate, que venceu o prêmio PEN/Faulkner no ano passado.
Anne Rice - Quando trabalhava em seu primeiro romance, "Entrevista com o Vampiro", na década de 70, Anne Rice revisava cada página datilografada antes de partir para a seguinte. Hoje, usa um computador no lugar de uma máquina de escrever, e as revisões são constantes e mais fluidas. Ela escreve um capítulo por dia para certificar-se de que cada seção será consistente em seu tom e estilo, e sempre trabalha de oito a nove horas sem descanso sempre que está no meio de um romance. Às vezes, passa um ano ou dois pesquisando para um livro antes de começar a escrever o primeiro esboço.
Ela ajusta o tipo de letra do computador para a fonte Courier tamanho 14 e dobra os espaços entre as linhas no monitor de 30 polegas de seu computador Mac, para que seu campo de visão se encha de palavras. "Penso que quanto maior o monitor, maior a concentração", diz Anne, que escreve o terceiro livro de sua trilogia sobre anjos. Ela edita seu trabalho continuamente. "Mesmo depois que você fez tudo isso, alguém por aí vai acabar encontrando um erro de edição e achar que você é uma pessoa negligente."
Richard Powers- Os livros de Richard Powers são sempre guiados por um conceito, possuem tramas complexas e são cheios de ciências misteriosas. Ele escreveu seus três últimos romances deitado em uma cama, ditando o texto para um laptop com um programa de reconhecimento de voz.
Para escrever "Generosity", seu romance mais recente, que trata da busca do gene da felicidade, ele trabalhou dessa maneira cerca de oito ou nove horas por dia. Ele usa uma caneta para fazer a edição em uma tela sensível ao toque, reescrevendo frases e sublinhando palavras. Segundo Powers, esse processo representa "a recuperação do ato de contar histórias em voz alta, e a recuperação do uso da mão e toda a urgência palpável".
Colum McCann - Quando está no meio de um romance, Colum McCann, às vezes, imprime um ou dois capítulos em tipos grandes, os grampeia como livro e os leva para o Central Park. Procura um banco e finge estar lendo um livro de alguém. Outras vezes, quando relê parte de um diálogo ou tenta ajustar a expressão de uma personagem, reduz o tamanho das letras no computador para a fonte Times New Roman número 8. "Isso me força a olhar com mais atenção para as palavras e examinar o motivo delas estarem ali".
Mudar a aparência das palavras lhe dá distanciamento crítico, afirma. Para pesquisar seu romance "Let the Great World Spin", que se passa em Nova York e é finalista do National Book Award, McCann conversou com homicidas e policiais, leu histórias de prostitutas dos anos 70 e assistiu a arquivos de imagens. O momento mais difícil sempre surge no fim, quando está exausto e sente que não conseguirá escrever outro romance. Nesses momentos, lembra-se de Samuel Beckett: "Não importa. Tente novamente. Fracasse novamente. Fracasse melhor".
Russell Banks - É um escritor que vive no Norte do Estado de Nova York, escreve ensaios de não ficção e resenhas em seu computador, mas "fica bloqueado" se tenta escrever ficção dessa maneira. Ele faz seus primeiros esboços à mão, trabalhando das 8h às 13h30 em um pequeno estúdio. Esse estúdio, que já foi um armazém de xarope, fica em uma área de floresta a cerca de 900 metros de sua casa.
Seus romances às vezes começam com uma única frase ou sentença. À medida que a história se desenrola, ele faz um esboço cru que engloba toda a trama, e um outro esboço mais curto e mais detalhado que mapeia o que vai acontecer nas próximas 10 ou 20 páginas. "Isso me impede de levar um tombo", diz Banks, cujos livros incluem "Affliction" e "The Sweet Hereafter", ambos romances.
Ele digita seus manuscritos no computador assim que tem um esboço completo e em seguida faz incontáveis revisões. No momento, Banks está na metade do caminho de um romance ambientado em Miami.
Postado no VALOR ECONÔMICO - Eu & fim de Semana - 13/11/2009
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