Taeco Toma Carignato*
André Machado, jovem historiador, ao comentar a minha coluna "Dona Maria: a religião de cada dia", chamou a atenção sobre o apego a preconceitos. Ateu por convicção, Machado respeita muito as religiões. Ele recorda que, por exemplo, a crença evangélica possibilita aos deserdados sociais um papel importante em sua comunidade, por ser talvez "um dos poucos lugares em que um pedreiro, semi-alfabetizado, pode ser um orador respeitado". Do outro lado, ele reconhece que os mesmos evangélicos, vítimas de preconceitos por causa do modo de vestir - as mulheres têm cabelos muito compridos e são proibidas de usar calças compridas - e do discurso insistente, também se caracterizam pelo apego à segregação.
O preconceito não está apenas entre os evangélicos. Ele permeia toda a sociedade, manifestando-se também entre os que transitam nas periferias sociais. Nos imigrantes, as contradições são muito evidentes: os imigrantes japoneses discriminam os imigrantes coreanos que discriminam os imigrantes bolivianos, que se discriminam entre si pelas várias etnias às quais pertencem, e daí por diante.
Na Casa do Migrante, verdadeiro laboratório das relações sociais, políticas e culturais, observa-se discriminações em todos os níveis: cor da pele, religião, cultura, classe social, etnia, nacionalidade. Pois, lá convivem imigrantes, migrantes e refugiados brancos, negros, mulatos e indígenas (quéchuas, aimarás e guaranis), portadores de diferentes nacionalidades e com diferentes religiões (católica, evangélica, muçulmana, budista).
Por mais que se trabalhe com a integração cultural, os abrigados segregam-se em grupos e as pessoas são identificadas como "os brasileiros", "os bolivianos", "os colombianos", "os somalis", "os eritreus", "os congoleses", etc. Ou seja, a segregação é interna e externa. E os conflitos são frequentes no cotidiano da Casa.
Os funcionários da instituição foram treinados para evitar que as tensões se revertam em brigas e violências, mas estas, quando dominadas internamente, estendem-se para as ruas. Já aconteceu que três brasileiros brancos espancaram um africano negro fora da Casa, por um conflito iniciado dentro da instituição. A violência que, nos diálogos entre os abrigados, colocava-se além dos muros da instituição - nas ruas de São Paulo - então se revelou endógena, com caráter xenófobo e racista. O sujeito que liderou o espancamento era um jovem brasileiro branco, pobre e desempregado, que fazia poemas e sonhava em escrever peças de teatro. Paradoxalmente, a xenofobia foi manifesta por pessoas expostas à segregação e à marginalidade que se encontravam em condição de estrangeiridade radical dentro do próprio país.
O reverso - negros discriminando brancos - também acontece, de forma sutil porém igualmente violento. Refugiados africanos negros que provêm de classes sociais privilegiadas recusam-se a se aproximar de brasileiros pobres, incultos e, às vezes, maltrapilhos. Houve o caso de um abrigado da Guiana Inglesa, homossexual negro, músico talentoso, orgulhoso de sua cultura anglo-saxônica, repelir aproximação e elogio de brasileiro branco, pobre, inculto, encantado pelo fato de o guianense ter conseguido uma apresentação em programa de televisão. Aliás, identificá-lo como guianense era-lhe uma ofensa. "I´m british", retrucava.
Ou seja, pessoas em situações bastante precárias, socialmente e psiquicamente vulneráveis, sendo em geral vítimas do racismo, da segregação e de violências diversas, mantêm o seu apego à xenofobia. Como entender isso?
Ninguém é imune ao preconceito e se reconhecermos que este mal está em cada um de nós, talvez possamos pensar em alguma forma de erradicá-lo.
Podemos começar pela xenofobia infantil. A criança pequena em certos momentos mostra estranhamento diante de um rosto desconhecido. Com o processo de socialização, aprenderá a separar o "nós" (o que lhe é familiar) do outro (o que lhe é desconhecido). Vai ampliando o campo "familiar", mas sempre permanecerá nela algo desconhecido do qual não consegue se separar e representar. Na criança, portanto, permanecem restos não identificados e não simbolizados que lhe causarão estranheza e podem ser figurados como estrangeiro. Contudo, para a xenofobia infantil transformar-se em racismo é necessário o suporte do discurso racista.
O preconceito é um fenômeno psicológico e um produto da cultura. Está relacionado a mecanismos de defesa que sustentamos para afastar ameaças imaginárias. Quanto maior a nossa identificação com as características das pessoas que discriminamos, maior a força do preconceito. A criança internaliza atitudes preconceituosas dos pais com os quais se identifica. A escola, o grupo social e a mídia também são fontes de preconceito. Quanto menos praticarmos o exercício do pensamento e da reflexão, maior a necessidade de nos defendermos de pessoas e coisas que nos causam estranheza.
Outra relação fundamental para entendermos o preconceito é a sua associação com a paranóia. Como se institui a paranóia? Uma das teorias é fornecida pela psicanálise de Jacques Lacan. Na criança, o "eu" que marca a sua identidade é formado por volta dos 18 meses pela identificação e internalização do "eu" da pessoa que cuida - geralmente a mãe - deste pequeno ser, frágil e totalmente dependente. Este "eu", a princípio, é corporal. A criança que até essa idade apresenta percepções fragmentadas do próprio corpo vai constituir sua imagem corporal de forma integrada identificando-se pela incorporação da figura materna.
Porém, o "eu" estrangeiro nunca vai totalmente se integrar. Daí, sempre vão conviver dois "eus" no sujeito humano que estarão sempre em conflito. Se houver cisão interna e um deles for rejeitado e projetado para fora, poderá tornar-se discriminado e perseguidor. Ou seja, o sujeito coloca no outro seus próprios aspectos negativos para transformá-lo em vítima do preconceito e/ou perseguidor. A xenofobia e a paranóia, então, provêm das mesmas origens. Portanto, para falar sobre preconceito temos de pensar em nós mesmos como fontes alimentadoras.
*Taeco Toma Carignato é psicóloga psicanalista e jornalista. Doutora em psicologia social (PUC-SP) e pós-doutora em psicologia clínica (USP), é pesquisadora do Laboratório Psicanálise e Sociedade (USP) e do Núcleo de Pesquisa: Violência e Sujeito (PUC-SP).Fonte: Terra Magazine, 29/10/2009
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