domingo, 8 de novembro de 2009

MICHEL MAFFESOLI - Entrevista

"a crise é um assunto chato"

 Você sabe, fui obrigado a me caricaturar”, diz um sorridente Michel Maffesoli, circulando pelo amplo salão do Copacabana Palace, onde encontrou o Jornal do Brasil na última sexta, logo antes de sua palestra na Casa do Saber, para o seminário Panorama do Pensamento Francês Contemporâneo. Provocador, o sociólogo e professor francês admite que precisa forçar o traço, exagerar seus argumentos, quando quer agitar o comodismo intelectual que toma conta das academias. Expoente do pensamento pós-moderno, Maffesoli acredita que a elite intelectual – universidades, imprensa, classe política – continuam presos aos velhos pilares da modernidade. Não conseguem acompanhar as mudanças de paradigmas do mundo emergente, dominado por outros valores: hedonismo, energia voltada ao presente, esgotamento das instituições...

Na entrevista, o sociólogo desmonta as certezas do pensamento oficial e fala do lugar do Brasil na nova configuração mundial.

Estamos em plena crise. A mídia não para de falar de uma crise financeira, política, de valores... Em seu último livro 'Apocalypse', porém, o senhor prefere a palavra “apocalipse” ao termo “crise”, mas usando-a em seu sentido etimológico, ou seja: a revelação de algo novo. A mídia e as instituições ainda não entenderam que este momento pode ser, na verdade, a gestação de novos paradigmas?

A crise é um assunto chato. Sou daquelas pessoas que, para provocar, já vai logo dizendo que não existe crise (risos). Se fomos reduzir a crise a uma dimensão econômica e financeira, é claro que ela existe, e que tem consequências. Mas para mim o que interessa de fato é a emergência de novos paradigmas. Quando há uma passagem de um momento a outro, como acontece agora, surgem crateras em todos os lugares. É um pouco como um garoto quando chega a adolescência. Ele está bem consigo mesmo, em harmonia com seu ambiente, e de repente começa a ficar com espinhas, vê mudanças em seu corpo, começa a repensar sua relação com si próprio e com os outros, sem que haja razão precisa para isso, a não ser uma passagem a outro estágio. Michel Foucault e outros pensadores mostraram que a cada quatro séculos, mais ou menos, acontece um cansaço, uma saturação, uma usura das maneiras de viver e pensar. Estamos vivendo uma destas usuras. Algo como “a maquinaria funcionou, agora vamos passar a outra coisa”.

Que novos paradigmas são esses?
Ao olharmos as práticas da juventude, percebemos que há vitalidade, um prazer de ser, um prazer do corpo, uma dimensão criativa da existência. O valor do trabalho já não é mais um fim em si, mas algo ligado à criação. Antes, o trabalho era o percurso para realizar-se. Hoje esta realização passa por uma dimensão mais lúdica. A modernidade era o positivismo, o mito do progresso: casa, futuro, desenvolvimento. Na pós-modernidade, essa projeção dá lugar ao presente. Não é a primeira vez que estas mudanças acontecem. O fim de UM mundo não é o fim DO mundo.

Ligados ao presente, os jovens de hoje já não estão mais presos à ideia de 'projeto'?
Eu não sei quais são seus debates no Brasil, mas na França a palavra “projeto” é empregada sem parar, em todos os níveis. Tudo é projeto! Já escrevi que quando não estamos convencidos de alguma coisa, empregamos uma palavra repetidamente. Trata-se de uma espécie de encantamento: cantamos alguma coisa até convencermos os outros e a nós mesmos. As relações amorosas, por exemplo. Ninguém fala mais de amor do que um casal que vai se separar. Falam de amor para salvá-lo. O mesmo acontece com os “projetos”. Mais se fala, menos há.

Mas a falta de projeto não significa, necessariamente, falta de ação e criação, certo?
Existem grandes sociedades que se concentraram no presente, no hedonismo, no prazer do momento... O engano sociológico é que havíamos pensado a modernidade como uma energia que se projetava. A partir do momento que se vê que não há mais projeto, logo se pensa que não há mais energia. Mas só porque não se projeta para o futuro não significa que não se tenha energia. Mobilizando uma energia para o presente, podemos fazer uma pessoa trabalhar 18 horas por dia! (risos) É uma energia que não está mais distante, no progresso. Ela está dentro – no ingresso, na alegria do mundo.

Existe um abismo entre a realidade pós-moderna e as nossas instituições?
Quando há grandes mudanças, é preciso um tempo para tomar consciência. Nesse caso, há ainda uma complicação adicional, porque aqueles que têm o poder de falar sobre as mudanças (jornalistas, intelectuais, políticos) continuam com os valores antigos da modernidade. Neste sentido, a imprensa, a universidade e a vida política não acompanharam a vida real. Toda sociedade precisa de uma elite intelectual. Mas esta elite deve estar em sintonia com os valores de seu tempo. A nossa, infelizmente, ficou nos mesmos sistemas modernos do século 20.

Em seu livro 'A parte do diabo', o senhor fala em relativismo e politeísmo de valores, e afirma que a vida social não pode mais ser compreendida como a expressão de um bem único. Mas a disputa entre o Ocidente e o Islã não seria uma guerra entre dois valores absolutos?
Já escrevi em algum lugar que a querela entre Bush e Bin Laden é uma briga conjugal. Ambos têm os mesmos valores, são monoteístas, acreditam em algo universal e querem impô-lo ao mundo. Mas o que muita gente esquece é que o Islã hoje faz o que os cristãos fizeram há cinco séculos. O Bin Laden do momento teve predecessores cristãos, alguns piores. Mas, apesar disso, vivemos o fim da universalização. A disputa entre os EUA e Bin Laden é o que em francês chamamos de “combat d'arrière garde”. É quando um exército percebe que a guerra está perdida e fica na retaguarda lutando, sem mais nada a perder, partindo para uma última tentativa. Normalmente são as brigas mais sangrentas. Tenho um sentimento de que se trata de um pega-pra-capar do velho universalismo.

Por sua origem multicultural, Obama não poderia ser uma ruptura definitiva com esta universalização de valores?
Obama é simpático justamente por vir desta mistura. Sua eleição pode abrir os espíritos em relação aos “pequenos brancos” como Bush ou Clinton, fundamentalmente mais arrogantes. Obama, ao contrário, tem um lado mais humano. Mas evito falar por não ter certeza de que se possa esperar algo dos EUA, que representam o extremo ocidente, os valores ocidentais em decadência. Houve uma hegemonia americana, assim como houve uma europeia, mas não é olhando para eles que veremos o mundo emergente.

Os fenômenos pós-modernos, como a saturação política, o esgotamento da razão, a fragmentação social em tribos, poderiam ser vistos como uma volta a certos sentimentos primitivos, misturados a uma tecnologia sofisticada?
É verdade que tudo isso renova com atitudes arcaicas. Porque, na verdade, a pós-modernidade não é mais do que um retorno a uma pré-modernidade, só que não em sua totalidade. Não estamos mais confrontados à flecha iluminista do progresso, nem ao círculo nietzcheniano, mas sim à espiral. Vemos um monte de coisas antigas voltar, com suportes tecnológicos, como, por exemplo, a internet. Então, sim, há emoções e outras atitudes arcaicas, mas as encontramos em blogs, flashmobs, fóruns de discussão...

O senhor disse que o Brasil é um laboratório da pós-modernidade. Por quê?
Cometi um erro dizendo isso, porque acredito fundamentalmente que seja verdade (risos). Na verdade, não gostaria de passar por um estrangeiro que fica opinando sobre o país, como certos colegas, que passam 10 dias no Brasil e já acham que conhecem tudo e já podem dar lições aos brasileiros. Mas a primeira vez que vim aqui foi em 1991 e me senti bem logo de cara, foi amor à primeira vista. Pessoalmente e intelectualmente. Percebi que havia uma série de pesquisas que colocavam em valor as características pós-modernas, como a concentração no presente, a visão do corpo não apenas como instrumento de produção, enfim, a razão sensível, que não é a negação da razão, mas um enriquecimento dela. E, para dizê-lo em termos lógicos, o Brasil é um país com dimensão oximórica – uma figura de retórica que eu uso para definir ideias opostas, que parecem excluir-se mutuamente mas que, no fim, se combinam, como num curto-circuito. Mais ou menos como “monstro delicado”.

E no que diz respeito à estetização do cotidiano, outro tema que lhe é caro, temos nossa arquitetura, cheia de curvas...
Sim, mas infelizmente vocês tiveram influência de Le Corbusier e da Bauhaus, uma arquitetura reduzida à funcionalidade. Por outro lado, no caso do Brasil a funcionalidade foi apagada por uma exageração do puro e simples tropical. Mais simplesmente, reduzir os ângulos. A modernidade é o ângulo. A pós-modernidade é o barroco.
Reportagem de Bolívar Torres, Jornal do Brasil - 07/11/2009

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