Rubem Alves*
Dar autógrafo é coisa boa e é coisa ruim. Boa porque quem pede um autógrafo está, sem o saber, pedindo um pedacinho daquela pessoa que é admirada. E é coisa ruim porque cansa – cheguei a ter tendinite no polegar. E há o perigo de a gente ficar irritado. Uma vez tive um pesadelo, sonhei que dava autógrafos numa fila que não tinha fim...
Mas há situações especiais. Quando, por exemplo, chega uma mãe pedindo autógrafo para o livrinho do nenezinho que ela trás no colo – por vezes do nenezinho que ela ainda trás dentro da barriga. Essa mãe está pedindo mais que uma assinatura. Está pedindo que a gente aceite se padrinho do nenê...
Aí eu volto aos tempos antigos quando os netos beijavam a mão do avô pedindo não um autógrafo mas a bênção. “A sua bênção, vovô...” “A minha bênção, meu neto...”
A gente fala as palavras sem pensar no seu sentido. “Bênção” vem de “bendição”; que vem de “dizer o bem”, “bem-dizer”. De “bem-dizer nasce “benzer”... Quem bem diz é feiticeiro, mágico, vive no mundo do encantamento onde as palavras são poderosas: basta dizer a palavra para que ela aconteça.
Mas há uma diferença entre as palavras que os jovens dizem e as palavras que os velhos dizem. As palavras dos jovens anunciam um futuro que se vê ao longe; as palavras que os velhos dizem anunciam uma partida que se aproxima. Os jovens estão chegando. Seus filhos são parte da sua bagagem.Os velhos estão partindo. Não têm bagagem. É assim que o Chico os descreve - de mãos vazias. A única coisa que eles têm para deixar é alguma palavra colhida dentre as muitas que se provaram inúteis.
Os velhos falam como quem planta sementes de árvores cuja à sombra nunca se assentarão. São palavras do mais alto desejo, de “benzeção”...
Por isso não entendo... Andando pelos corredores das maternidades vejo, pregadas em portas de quarto, as bandeiras de times de futebol. Será esse o mais alto desejo de um pai para um filho, o nome de um time de futebol?
Aconteceu que fui atingido por duas criancinhas, neto reto e neto torto, e preciso abençoá-las com a minha mão. E mexendo nas minhas coisas encontrei uma bênção que um outro avô escreveu e que diz tudo o que eu quero dizer. É uma oração, reza, prece, linguagem velha de um homem bom que acreditava em Deus. Mas se você não acredita não tem importância porque a palavra é poderosa sempre, mesmo que não haja Deus.
E eu a repito pensando em todas as crianças que estão nascendo nesse mundo que nós fizemos e que haverão de construir um outro mundo diferente do nosso:
“Ó Deus, nós oramos por aqueles que virão depois de nós, por nossos filhos, pelos filhos de nossos filhos, pelos filhos dos nossos amigos, e por todas as vidas que estão nascendo agora, puras e esperançosas, com o sol da manhã em suas faces. Lembramos, com angústia, que eles viverão no mundo que estamos construindo para eles. Estamos esgotando os recursos da terra com a nossa avidez e eles sofrerão necessidades por causa disto. Estamos construindo cidades tristes e casas escuras onde o sol não penetra, porque queremos ganhar mais, e é nelas que eles deverão morar. Estamos tornando a carga muito pesada e o ritmo de trabalho muito cruel e eles cairão fracos e soluçantes ao longo do caminho. Estamos envenenando o ar da nossa terra com as nossas mentiras e com nossa sujeira e eles terão de respirá-lo.
Ó Deus, tu sabes quanto já gritamos em agonia quando tivemos de sofrer pelos pecados dos nossos pais e como lutamos em vão contra o destino inexorável que conduz nossa vida ou nos aprisiona a ela. Salva-nos de lesar, com a crueldade dos nossos pecados, os inocentes que virão depois de nós. Ajuda-nos a quebrar a antiga força do mal com uma vontade sagrada e firme, e dotar nossas crianças com ideais mais puros e pensamentos mais nobres. Dá-nos a graça de deixarmos esta terra ainda melhor do que a encontramos; a construir sobre ela cidades belas e humanas nas quais o grito do sofrimento desnecessário cesse por completo, e a colocar a ética e o amor sobre a nossa vida de negócios, para que possamos servir e não destruir. Levanta o véu do futuro e mostra-nos como será a nova geração se a nossa culpa a arruinar: para que a nossa cobiça seja freada e assim possamos andar no respeito daquele que é Eterno. E dá-nos uma visão de como serão os anos que estão por vir se forem transformados pelos teus filhos: para que tenhamos coragem e batalhemos por esse futuro novo.”
*Rubem Alves é escritor, teólogo e educadoFonte: Correio Popular, 08/11/2009
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