terça-feira, 29 de junho de 2010

Ajuste fiscal crível

Antonio Delfim Netto*


Para entender as dificuldades escondidas na construção da União Europeia (UE) e na introdução da moeda única, o euro, basta considerar a situação do país (a Bélgica) em cuja capital ela está centrada (Bruxelas). A Bélgica é um reino construído à moda antiga quando as nações e seus habitantes pertenciam aos seus soberanos. Aparentemente ela é o resultado de um complô amoroso que transformou em 1831 (por artes da diplomacia de casamentos) um lindo príncipe alemão de contos de fadas (falido), em imperador de uma espécie de Estado-tampão, a Bélgica, sob o nome de Leopold I. Ela é constituída por uma combinação de três regiões que se estranham duas a duas: a Valônia (40% da população), onde se fala francês e é mais pobre do que Flandres, onde se fala o flamengo (holandês) e alemão, e Bruxelas (um enclave dentro de Flandres), onde se instalou a corte e sua burocracia afrancesada, que fala as duas línguas. Para dar uma ideia de complexidade desse arranjo, basta lembrar que somente em 1971 ela foi dividida em três comunidades baseadas nas três línguas, que em 1972 foi a primeira vez que um cidadão de língua alemã participou do governo e que só em 1989 foi instituído o sistema federativo. Há, além do mais, uma gravíssima assimetria: enquanto a maioria dos flamengos fala francês, apenas uma pequena minoria dos valônios fala o flamengo.

Essa descrição sumária e imperfeita da construção da Bélgica é suficiente para entender a grande preocupação que se instalou com a recente vitória nas urnas da Nova Aliança Flamenga (N-VA), cujo líder, Bart de Wever, reabre a velha discussão sobre a desconstrução do Estado belga. Criado por uma mágica diplomática, ele poderá morrer nas urnas por ter sido incapaz de equilibrar os crescimentos regionais e de harmonizar os interesses dos valônios e flamengos. Esses que, anualmente, transferem aos primeiros qualquer coisa como 6% do PIB belga!

A essa altura o leitor poderá estar pensando que diabos tem essa confusão belga a ver com os problemas da União Europeia encrencada com a Grécia? Tem tudo! Debaixo do seu nariz, em Bruxelas assiste-se, ao vivo e a cores, que ela está longe de ser uma área monetária ótima, condição necessária para o sucesso e desenvolvimento de uma comunidade econômica a preliminar da integração política que é o objetivo final da União Europeia.

Mas onde está essa evidência que dificulta a realização do generoso desejo de estabelecer a "paz eterna" num continente belicoso em que francos e germânicos lutam há séculos! O problema belga é uma espécie de microcosmo dessa luta: 180 anos de comunhão forçada (nada menos do que sete gerações!) sob a proteção e a mão de ferro de um reino, foram incapazes de dissolver as diferenças. A Bélgica, ela mesma com 32,5 mil km2 (menor do que o Estado do Rio de Janeiro) e 10 milhões de habitantes (menos do que o Estado do Paraná) não é uma área monetária ótima: os valônios e os flamengos não migram para integrarem-se num único mercado de trabalho. A distância média entre um valônio e um flamengo é, certamente, inferior a 100 km (São Paulo a Campinas). Não existe nenhuma restrição física: o problema é linguístico mas, fundamentalmente, é cultural, que se acumulou ao longo do tempo.

Quando olhamos mais de perto, o fenômeno existe (talvez em menor proporção) dentro de todos os países da Eurolândia, mesmo quando usam apenas uma língua com múltiplos dialetos. Apesar de tudo, isso não é um obstáculo intransponível para a construção de uma união política.

O problema que merece hoje maior atenção é como a Eurolândia superará os desequilíbrios fiscais, a descoordenação nas políticas de salários, de preços, de regulação e de produtividade entre os seus membros para recriar o equilíbrio original das suas taxas de câmbio quando entraram no euro. Com relação aos desequilíbrios fiscais há um pessimismo muito grande. A "teoria" derivada de um keynesianismo de pé quebrado afirma que, necessariamente, os ajustes fiscais exigidos produzirão recessão e agravarão os sofrimentos.

Tal proposição só é correta nos livros-texto, quando não se consideram os efeitos estimuladores das expectativas sobre o "espírito animal" dos empresários, se eles acreditarem no programa. Um forte ajuste fiscal que corte permanentemente as despesas, acompanhado da desvalorização do euro, que melhore as condições de competição, não amplie a tributação e tenha credibilidade pode estimular a ampliação dos investimentos privados e levar a uma expansão do PIB. A teoria é velha: Keynes e também Pigou sugeriram essa possibilidade em 1931. Empiricamente, desde os anos 80, essa deixou de ser uma hipótese curiosa, como mostram os casos da Dinamarca e da Irlanda.

Como sempre, a introdução das "expectativas" corrige os resultados dos modelos ingênuos. O que os países da Eurolândia em dificuldade precisam para reduzir os sacrifícios de suas populações é um ajuste fiscal crível, acompanhado da desvalorização do euro e da reorganização de suas dívidas.
______________________________
*Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras.
Fonte: Valor Econômico online, 29/06/2010

Nenhum comentário:

Postar um comentário