terça-feira, 29 de junho de 2010

O ‘testamento' de José María Díez-Alegria





Visitei com frequência José María Diez Alegría (foto) na Casa de Saúde dos jesuítas em Alcalá de Henares. Quando completou 97 anos me comunicou algo que considero o seu testamento que procuro reproduzir aqui respeitando as suas palavras, o quanto permite a minha memória. O relato é de Javier Domínguez no sítio Religión Digital, 28-06-2010. A tradução é do Cepat.

Eis o ‘testamento’.


Fiz noventa e sete anos e isto é uma barbaridade. Não gostaria de chegar aos cem anos porque aos cem anos entra-se em uma categoria de monstros da natureza na qual não gostaria de estar. De qualquer forma, se chegar aos cem anos aceitarei com bom humor. Não se pode perder nunca o sentido do humor, de rir-se de si mesmo. Sempre tive esse senso de humor que é muito saudável: não levar muito a sério a si mesmo.

Eu não quero morrer, tampouco quero continuar vivendo. Seja o que Deus quiser. Estou nas mãos de Deus. Sempre digo: ‘quando queira e como queira’. Eu preferiria morrer rapidamente, não quero uma agonia lenta e dolorosa que faz sofrer a todos. Disseram-me que o mais rápido é um edema pulmonar. Eu fiz um testamento vital no qual digo que não prolonguem artificialmente a minha vida, que me deixem morrer tranquilamente e me dêem todos os tranquilizantes necessários para morrer tranquilo, mesmo que encurtem a vida.

Isso é moralmente bom segundo a doutrina católica e lhe digo eu, que fui professor de moral na Universidade Gregoriana. Essa coisa da Opus Dei e dos Legionários de Cristo que obrigam as pessoas a morrerem com dor como Cristo, não sei onde leram isso no evangelho e nem onde estudaram moral. Cristo morreu sofrendo porque alguns perversos o torturaram e lhe crucificaram, mas ele não queria que os seus amigos morressem torturados.

Tudo é um mistério. A vida é um mistério, a morte é um mistério, Deus é um mistério. Nós não conhecemos as coisas em si mesmas, mas as interpretamos segundo nossas categorias mentais. Nossas ideias são ‘predicamentais’ como dizem os filósofos. Vivemos em um mundo ‘predicamental’, hoje diríamos em um mundo virtual e nesse mundo nos movemos com toda desenvoltura, mas não sabemos o que é o mundo em si. Intuímos que há uma realidade ‘transcendente’, não predicamental. A esta realidade transcendente, que chamamos de Deus, não podemos chegar pela razão, que é predicamental. Eu acredito que chegamos a Deus pelo que Kant chamava de razão prática, a razão moral, a razão emocional. Assim podemos chegar a Deus. Mas temos que ter consciência de que este conhecimento é um conhecimento ‘analógico’.

Como dizia Santo Tomás tudo o que afirmemos de Deus, temos que negar ao mesmo tempo. Posso dizer que Deus é bom, mas, ao mesmo tempo tenho que dizer que a palavra bom, que é predicamental, não se pode aplicar a Deus, é outra coisa, na qual entra algo do que eu entendo por bom. Tudo é um mistério. Vivemos rodeados de mistério. Entretanto, se tenho esperança é porque estou nos braços de Deus, ainda que Deus não tenha braços. Como dizia São Bernardo: ‘Deus tem pés para que tu os beije’. Tudo é um mistério e temos que tratá-lo como mistério.

Eu acredito que Jesus de Nazaré não teria compreendido as disquisições dos concílios sobre se tinha duas naturezas (divina e humana) e apenas uma pessoa divina. É um mistério, e eu acredito, inclusive na ressurreição. Jesus, o filho de Deus, passou fazendo o bem e nos ensinou o caminho. O principal de sua mensagem é a opção pelos pobres. Não nos julgará por nossa fé ou nossos ritos, mas sim se demos de comer ou não ao faminto. Estou totalmente de acordo com a teologia da libertação.

Finalmente, penso que a Igreja católica em seu conjunto traiu Jesus. Esta Igreja não é que Jesus quis, mas sim a que quiseram ao longo da história os poderosos do mundo. Estas são ideias que tenho agora, surdo e meio cego, esperando a morte com muita esperança e com muito humor.
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Fonte: IHU online, 29/06/2010

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