"A luta contra os fundamentalismos, os religiosos e os políticos,
é o melhor antídoto contra o Deus violento e
contra a violência em nome de Deus.
Nessa luta não violenta, Saramago esteve comprometido
de pensamento, palavra e obra."
Juan José Tamayo*
"Deus é o silêncio do universo, e o ser humano, o grito que dá sentido a esse silêncio". Essa definição que Saramago dava de Deus é a mais bela que jamais li ou escutei. Li-a em seus livros e a escutei em várias ocasiões de seus lábios.
Ela mereceria aparecer entre as 24 definições – com ela, 25 – de outros tantos sábios reunidos em um simpósio que são recolhidos no "Libro de los 24 filósofos" (Ed. Siruela, 2000), cujo conteúdo foi objeto de um amplo debate entre filósofos e teólogos durante a Idade Média.
Para um teólogo dogmático, definir Deus como o silêncio do universo talvez é dizer pouco. Para um teólogo heterodoxo como eu, seguidor das místicas e dos místicos judeus, cristãos, muçulmanos como o Pseudo-Dionísio, Rabia de Bagdá, Abraham Abufalia, Algazel, Ibn al Arabi, Rumi, Hadewich de Amberes, Margarita Porete, Hildegarda de Bingen, Mestre Eckhardt, Juliana de Norwich, João da Cruz, Teresa de Jesus, Baal Shem Tov; cristãos leigos como Dag Hammarksjlöd; hindus como Tukaram e Mohandas K. Gandhi; e não crentes como Simone Weil, é mais do que suficiente. Dizer mais seria uma falta de respeito para com Deus, creia-se ou não em sua existência. "Se tu compreendes – dizia Agostinho de Hipona –, não é Deus".
Saramago compartilhou com Nietzsche a parábola de Zaratustra e o apólogo do Louco sobre a morte de Deus e talvez pudesse colocar sua assinatura embaixo de duas das afirmações nietzschianas mais provocativas: "Deus é a nossa maior mentira" e "Melhor nenhum deus, melhor que cada um construa o seu destino". Talvez coincida também com Ernst Bloch em que "o melhor da religião é que ela cria hereges" e que "só um bom ateu pode ser um bom cristão, só um cristão pode ser um bom ateu". Sua vida e sua obra foram uma luta titânica contra Deus, com todas as forças, que terminou em empate, sem vencedor nem vencido.
Em sua novela "Caim", ele recria a imagem violenta e sanguinária do Deus da Bíblia judaica, "um dos livros mais cheios de sangue da literatura mundial", nas palavras de Norbert Lohfink, um dos mais prestigiosos biblistas do século XX. Imagem que continua em alguns textos da Bíblia cristã, na qual Cristo é apresentado como vítima propiciatória para reconciliar a humanidade com Deus e que volta a se repetir no teólogo medieval Anselmo de Canterbury, que apresenta Deus como donos de vidas e de fazendas e como um senhor feudal, que trata seus adoradores como se fossem servos da gleba e exige o sacrifício de seu filho mais querido, Jesus Cristo, para reparar a ofensa infinita que a humanidade cometeu contra Deus.
O Deus assassino da última novela de Saramago continua presente em não poucos rituais bélicos do nosso tempo: nos atentados terroristas cometidos por falsos crentes muçulmanos que, em nome de Deus, praticam a guerra santa contra os infiéis; em dirigentes políticos autoqualificados como cristãos, que apelam a Deus para justificar o derramamento de sangue de inocentes em operações que levam o nome de Justiça Infinita ou Liberdade Duradoura; em políticos israelenses que, acreditando-se ser o povo escolhido por Deus e únicos proprietários da terra que qualificam como "prometida", levam a cabo operações de destruição massiva de territórios, muros carcerários e assassinatos, calculados impunemente, de milhares de palestinos.
Após essas operações, Saramago não podia não estar de acordo com o testemunho do filósofo judeu Martin Buber: "Deus é a palavra mais vilipendiada de todas as palavras humanas. Nenhuma foi tão manchada, tão mutilada... As gerações humanas fizeram rodar sobre essa palavra o peso de sua vida angustiada e a esmagaram contra o chão. Ela jaz em pó e sustenta o peso de todas elas. As gerações humanas, com seus partidarismos religiosos, desgarraram essa palavra. Mataram e se deixaram matar por ela. Essa palavra traz suas digitais e seu sangue... Os homens desenham uma marionete e escrevem embaixo a palavra 'Deus'. Assassinam-se uns aos outros e dizem: 'Fazemos isso em nome de Deus'... Devemos respeitar os que proíbem essa palavra, porque se rebelam contra a injustiça e os excessos que, com tanta facilidade, são cometidos com uma suposta autorização de 'Deus'".
Eu também assino embaixo dessa afirmação de Buber. Por isso, muito raras vezes ouso pronunciar o nome de Deus.
A luta contra os fundamentalismos, os religiosos e os políticos, é o melhor antídoto contra o Deus violento e contra a violência em nome de Deus. Nessa luta não violenta, Saramago esteve comprometido de pensamento, palavra e obra. Sua vida foi todo um exemplo de ética solidaria – apoiou Aminatu Haidar e destinou os direitos de seu último livro para o Haiti – e iconoclasta de todas as idolatrias. Ele bem que merece nosso reconhecimento. Obrigado, José Saramago, por tuas pegadas!
________________________________________________*A opinião é do teólogo espanhol Juan José Tamayo, autor de "La crisis de Dios, hoy" (Ed. Verbo Divino, 2008, 3ª ed.). O artigo foi publicado no sítio Religión Digital, 19-06-2010.
A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: IHU online, 21/06/2010
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