Renato Ferreira Machado*
Na última semana, 18 de junho, calou-se a maior voz contemporânea da língua portuguesa. José Saramago, ao morrer, deixa um legado de perguntas e inquietações sobre a existência humana, feitas de uma maneira que ninguém ainda fizera e dificilmente alguém fará. Ateu convicto, o escritor português partiu desta vida preocupado com a falta de sentido que perpassa a humanidade. Não há novidades nisso, em se tratando de José Saramago: a explicitação desta falta de significado existencial é uma constante em suas histórias. “Ensaio sobre a Cegueira” talvez tenha se tornado sua obra mais conhecida, em função de uma adaptação para o cinema carregada de significados. Para começar, é dirigida pelo brasileiro Fernando Meirelles, que ganhou visibilidade ao mostrar no filme Cidade de Deus alguns meandros da sociedade brasileira de uma forma nunca vista antes. Da mesma forma, o elenco internacional atua sem a imposição hegemônica de uma única cultura (apesar da onipresença da língua inglesa), mas traz à luz uma síntese daquilo que se vive no ocidente como relação social. Enfim, há a grande metrópole onde a história se desenrola e que, no filme, não é identificada. Ali se encontram São Paulo, Buenos Aires e Montevidéo, apresentadas de uma forma que engana a visão: reconhece-se elementos de um lugar ou outro, porém, sem a certeza de que se está mesmo naquele lugar. Neste cenário, acompanhamos personagens sem nome que, aos poucos, são contaminados por uma estranha doença que tira a visão e, compulsoriamente, modifica suas existências.
A cegueira sobre a qual Saramago escreve possui uma sutileza que foi traduzida com fidelidade para as telas: não é uma cegueira de escuridão, mas uma cegueira “branca”, ou, de certa forma, fica-se cego por uma espécie de excesso de luz. Tudo fica branco, sem forma e sem foco, impedindo a diferenciação do que se vê, dificultando a circulação e a comunicação. Este dado, que quase passa desapercebido em toda a trama, carrega um precioso simbolismo: como humanidade, parece que não nos encontramos mais em um tempo de escuridão, em busca de luzes que iluminem a existência; pelo contrário, tem-se a impressão que, na pós-modernidade, vive-se sob intensas luzes que a tudo iluminam e explicitam. Há uma overdose de informações e acesso a estas, que podem trazer, igualmente, uma cegueira que impede a focalização de questões essenciais. Nesta adaptação literária, o cinema desperta a interrogação-chave de toda a filosofia e de toda a antropologia, exatamente pelo elemento audiovisual: o que são o espírito (atividade) e o cérebro (máquina) humanos? Se perceberá que a caracterização do homo não se dará tanto sua dimensão faber ou sapiens, mas exatamente sua porção demens¬ – ser que produz fantasmas, mitos, ideologias, magias. A realidade imaginária do cinema forma um duplo mistério com a realidade imaginária do homem (MORIN).
A evolução da doença vai marcando, simultaneamente, a decadência de condições humanas. De um incidente no trânsito – na sequência inicial – passa-se a um oftalmologista que também perde a visão e que precisará se juntar aos outros infectados: a dinâmica de contágio atropela todas as convenções, juntando a todos em um precário abrigo hospitalar. Logo se percebe que a intenção do isolamento não é tanto a busca de cura para a doença, mas o afastamento dos doentes daqueles que ainda não foram infectados. Em pouco tempo, porém, não haverá pessoas saudáveis e, nas palavras de um idoso caolho, terá restado apenas o caos. Em seu exercício estético, Saramago e Meirelles acabam fazendo um exercício teológico: sua história remete ao caótico primordial, existente antes da criação e que assombra esta pela possibilidade de afastamento por parte de Deus de junto de suas criaturas. Volta-se ao informe e vazio, pois a Palavra Criadora retirou-se, arrependida do que havia criado. Nesta situação, não há mais diferença entre luz e trevas, pois o vazio que a tudo domina não direfencia mais os seres e os devora indistintamente (MOLTMANN). Em meio à escalada da enfermidade, porém, acompanhamos a trajetória de um grupo que se forma dentro do abrigo para infectados. Integrando este grupo há uma mulher que não perdeu a visão e que, ocultando este dado, acompanha solidariamente o marido (o oftalmologista) para o exílio social imposto pelas forças do estado. Ela será testemunha, pela visão, daquilo que os demais só experimentarão pelos outros sentidos: memorizará faces das quais os outros apenas escutaram vozes, enxergará o ambiente degradante no qual está confinada e do qual os outros só saberão do desconforto pelo tato e olfato. A certa altura da história se perguntará a esta personagem se ela teme perder sua visão e ela responderá que tem medo daquilo que pode enxergar. Saramago talvez queira provocar, com isso, a visão do leitor/espectador: a cegueira não acaba se tornando um benefício em determinadas situações? Enxergar com clareza no contexto de Ensaio sobre a Cegueira não traz poder sobre os cegos, mas uma responsabilidade assumida na solidariedade ao sofrimento. Afinal, quando a esposa do oftalmologista resolve acompanhar o marido em sua quarentena, mentindo ser também cega, ela o faz por um amor profundo que a impede de abandonar o amado na angústia em que ele se encontrava.
O poder, por outro lado, é tomado por outros cegos, internados em uma ala vizinha a desta mulher. Um deles se autoproclama rei e passa fazer exigências cada vez mais cruéis aos restantes: para receberem comida, precisam se desfazer de seus objetos preciosos – jóias, relógios, dinheiro, etc. Quando estas riquezas findam, o “rei” e seus asseclas exigem as mulheres de cada ala em troca do alimento. Ala a ala, as mulheres são conduzidas aos “governantes” do asilo e por eles violentadas.
O patriarcado e as manifestações dele decorrentes no sexismo masculino não só humilharam as mulheres, mas também roubaram a humanidade dos próprios homens. O drama do eu masculino reside na busca permanente por segurança mediante o controle e a repressão, porque não há outra maneira de manter um eu consciente dividido. Quando o homem dividido e adestrado compensa os seus medos interiores mediante agressões contra mulheres e sua depreciação, ele destrói a sociedade humana. (MOLTMANN)
Meirelles e Saramago colocam na boca dos homens que estupram as mulheres toda vulgaridade que se ouve dos homens em geral quando se referem às suas “conquistas sexuais” no dia a dia, ressaltando o quanto esta relação perversa se encontra banalizada no atual contexto sociocultural. Ao mesmo tempo, é no olhar feminino que residem a criticidade e a esperança libertadora da opressão vivida na história: neste sentido, é bastante emblemática a imagem na qual as mulheres banham o corpo de uma companheira, morta ao ser estuprada. Parece se encontrar, ali, a urgência do resgate da dignidade humana em meio à degradação causada pela busca desenfreada de poder – dignidade necessária mesmo na morte, como memorial de tudo que a vida poderia ter proporcionado.
Em uma segunda parte da história, os internos deixam o asilo - já abandonado pelas autoridades estatais - e ganham a rua, guiados pela visão da esposa do oftalmologista. Seu caminhar, por uma metrópole deserta, se dá em conjunto, com um pousando a mão sobre o ombro do outro, buscando descobrir caminhos em unidade. Claramente um contraponto ao individualismo cegante da civilização ocidental, esta imagem faz lembrar que, em outra situação – com todos enxergando – cada um faria seu caminho sozinho, sem olhar para os lados ou enxergar o próximo. Assim, nas ruas, a vida é celebrada, com a chegada da chuva, as dúvidas são partilhadas e os tropeços são amparados. Ao passarem por uma igreja, o filme mostra a poderosa imagem de santos com olhos vendados, enquanto o sacerdote faz uma pregação referindo-se a At 9, 3-9 (ler este trecho no final do artigo): talvez a cegueira tenha vindo para que todos enxerguem melhor, como ocorreu a Paulo na estrada de Damasco.
Finalmente, o grupo chega à casa do oftalmologista. Sob um teto comum novamente, as pessoas se purificam das feridas e da sujeira, para logo após partilharem o alimento na mesma mesa. Eis o contraste com a sequência inicial da história, que se passa no trânsito de uma metrópole: em uma grande cidade, feita para muitos habitarem juntos, todos são anônimos e vivem em função da mecânica urbana; na casa, feita para poucos habitarem, há uma população de vozes, histórias, risos, confissões e silêncios. Tudo é importante e ninguém passa desapercebido. Neste ecumenismo – verdadeira habitação da casa comum – é possível voltar a enxergar, pois há o que o enxergar. É assim que a história contada por Saramago e retratada por Meirelles vai chegando ao seu final, com o primeiro cego recuperando sua visão e despertando a mais viva esperança nos demais: se a visão de um retornou a visão dos outros também voltará. Ateu confesso e militante, Saramago acaba fazendo uma bela metáfora sobre a ressurreição no desfecho de Ensaio sobre a Cegueira, uma vez que, na Tradição Cristã, o Cristo que volta dos mortos é esperança de todos os viventes que passarão pela aniquilação de sua existência. Primícia dos mortos, sua ressurreição é sinal da vida eterna prometida por Deus à sua criação. Porém, assim como na trama de Saramago, corre-se o risco de uma cegueira quanto ao profundo da existência, principalmente ao se acreditar em uma autoconsumação da vida através do imediato e daquilo que se pode comprar: ofuscadas pelas luzes do consumismo, do hedonismo, da compulsividade e da indiferença individualista da pós-modernidade, as pessoas precisam retomar seu caminho para casa para, sentados à mesma mesa, partilharem o banquete da dignidade e da paz.
MORIN, Edgar. O Cinema ou O Homem Imaginário.Lisboa: Relógio D’Água, 1997, p. 14.
MOLTMANN, Jürgen. No fim, o Início.São Paulo: Loyola, 2007, p. 49-58
(trecho 3-9):
Durante a viagem, quando já estava perto de Damasco, Saulo se viu repentinamente cercado por uma luz que vinha do céu. Caiu por terra, e ouviu uma voz que lhe dizia: «Saulo, Saulo, por que você me persegue?» Saulo perguntou: «Quem és tu, Senhor?» A voz respondeu: «Eu sou Jesus, a quem você está perseguindo. Agora, levante-se, entre na cidade, e aí dirão o que você deve fazer.» Os homens que acompanhavam Saulo ficaram cheios de espanto, porque ouviam a voz, mas não viam ninguém. Saulo se levantou do chão e abriu os olhos, mas não conseguia ver nada. Então o pegaram pela mão e o levaram para Damasco. E Saulo ficou três dias sem poder ver, e não comeu nem bebeu nada.
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* Doutorando em Teologia nas Faculdades EST
* Doutorando em Teologia nas Faculdades EST
Coordenador do Serviço de Pastoral Escolar e
Orientador Educacional do Ensino Médio
no Colégio Mãe de Deus
Muito boa essa análise, obrigado por compartilhar
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