segunda-feira, 21 de junho de 2010

Alteridade, dimensão primeira do sujeito

Emmanuel Lévinas

A filosofia de Lévinas considera o outro como medida para nossas ações. De acordo com o filósofo Castor Ruiz, precisamos pensar a construção de uma “cultura da alteridade”, na qual a responsabilidade pelo outro seja um componente ético de nosso cotidiano

“A ética é muito mais do que um código moral ou princípios formais de ação. A ética é a relação primeira, a abertura necessária para o outro. Por isso Lévinas afirma que a ética é a metafísica primeira”. A análise é do filósofo Castor Ruiz, em entrevista exclusiva que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. O outro deve ser sempre a medida para as nossas ações: “A grandeza de cada sujeito se mostrará na capacidade de responsabilidade pelo outro”. E completa: “Para Lévinas, a dimensão primeira do sujeito é sua abertura para alteridade. Pela abertura, constitui-se o sujeito, sempre em relação ao outro”. Na filosofia desse pensador, liberdade é a que se concretiza “como responsabilidade pelo outro”.

O tema estará em debate nesta quarta-feira, 23 de junho, no Ciclo de Estudos Filosofias da diferença - Pré-evento do XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da vida humana. Castor é graduado em Filosofia pela Universidade de Comillas, na Espanha, mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, e doutor em Filosofia pela Universidade de Deusto, Espanha. É pós-doutor pelo Conselho Superior de Investigações Científicas. Professor nos cursos de graduação e pós-graduação em Filosofia da Unisinos, escreveu inúmeras obras, das quais destacamos: As encruzilhadas do humanismo. A subjetividade e alteridade ante os dilemas do poder ético (Petrópolis: Vozes, 2006); Propiedad o alteridad, un dilema de los derechos humanos (Bilbao: Universidad de Deusto, 2006), Os Labirintos do Poder. O poder (do) simbólico e os modos de subjetivação (Porto Alegre: Escritos, 2004) e Os Paradoxos do Imaginário (São Leopoldo: Unisinos, 2003).

Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como alteridade e subjetividade se colocam na problemática filosófica de Lévinas?
Castor Ruiz - Lévinas, contrariando a modernidade, não pensa o eu como um dado natural. O eu não existe como uma essência natural herdada, com uma vontade e uma liberdade já dadas pela sua natureza. Para Lévinas, a dimensão primeira do sujeito é sua abertura para alteridade. Pela abertura, constitui-se o sujeito, sempre em relação ao outro. A abertura para alteridade é condição de possibilidade do ser do sujeito, sem ela, nós não seríamos humanos. Seríamos outra espécie viva, mas não humanos. A alteridade, enquanto relação primeira, é constitutiva da subjetividade.
Não existe um eu natural. O eu de cada sujeito é constituído desde o primeiro momento de sua existência pela relação com a alteridade. Aquilo que eu sou como sujeito é o resultado histórico da relação com os outros ao longo da minha existência. A abertura para alteridade é prévia à minha vontade, ela é condição necessária da subjetividade. Eu não sou livre para decidir sobre a minha abertura para o outro, a alteridade me é oferecida como necessária. Neste sentido que Lévinas diz que a alteridade é metafísica.
A alteridade é uma abertura que existe sempre como relação com o outro. A relação me constitui sujeito e na relação me constituo como sujeito. Lévinas denomina essa relação da alteridade de ética. A ética é muito mais do que um código moral ou princípios formais de ação. A ética é a relação primeira, a abertura necessária para o outro. Por isso Lévinas afirma que a ética é a metafísica primeira.

Metafísica levinasiana

Porém, o sentido em que Lévinas utiliza o termo metafísica é muito peculiar. Lévinas contrapõe metafísica a ontologia. Entende por ontologia todas as formas de pensamento que reduzem a singularidade da alteridade a um conceito ou categoria universal, a uma totalidade. Cada vez que tentamos conceitualizar a alteridade num universal, a negamos naquilo que tem de peculiar: sua singularidade, sua diferença, sua transcendência. Para Lévinas, a filosofia ocidental em geral e a modernidade em particular se caracterizam por ter efetuado um reducionismo ontológico da alteridade a categorias racionais. A ontologização da alteridade produz a falsa ilusão de conhecer o outro sob categorias universais ou conceitos gerais. Ao universalizar, negamos a singularidade de cada sujeito e aniquilamos a dimensão de alteridade, fazemos dele uma totalidade.
A alteridade é, por princípio, irredutível ao conceito, inexaurível em categorias. A alteridade é singularidade, diferença. Por isso, poderíamos denominar a metafísica que Lévinas propõe de “metafísica da diferença”. A aparência paradoxal dos termos reflete uma tensão irredutível na alteridade. Sendo condição necessária do sujeito, existe de forma única e singular. Há um fundo trágico, não niilista, nessa tensão.
A abertura para o outro me constitui como diferente. Essa diferença se mantém porque, na relação, há uma transcendência inerente à alteridade. Cada vez que tentamos anular a relação de transcendência com o outro, provocamos sua assimilação a um conceito por mim elaborado. O outro nunca pode ser reduzido a conhecimento, sem anulá-lo. Quando penso que conheço o outro, não fiz nada mais do que reduzi-lo a meu conceito (no mesmo), anulando-o em minhas categorias. O outro sempre pode ser diferente, por isso é inexaurível. Lévinas utiliza a categoria de Infinito para aproximar-nos à compreensão (sem nunca explicar) a inexauribilidade da alteridade humana. O Infinito nos constitui e nos tensiona na abertura por ser.


IHU On-Line - Como Lévinas pode contribuir para a construção dos pilares de uma ética voltada para o Outro, mas que considere, ao mesmo tempo, a autonomia do sujeito?
Castor Ruiz - A relação com outro, a despeito do que a modernidade preconiza, não é uma opção da vontade livre do sujeito, mas a condição que constitui o modo de ser dessa vontade. A relação com o outro, que é prévia à minha vontade, me interpela. Toda relação é interpelação. Ela me afeta em muitos sentidos, me enriquece e me desafia. A interpelação, ainda prévia à minha liberdade, me responsabiliza especialmente quando o outro é necessitado. A responsabilidade pelo outro aparece para mim na relação antes que eu possa evitá-la. Uma vez responsabilizado tenho que dar uma resposta. Não posso evitar a resposta.
Então, em que consiste a liberdade para Lévinas? Liberdade é o modo como eu justifico a minha resposta à interpelação da relação. Posso virar o rosto, me omitir, até me aproveitar da necessidade do outro, mas, em todas as hipóteses, eu estarei dando uma resposta à interpelação do outro. Por isso, para Lévinas, a verdadeira liberdade é aquela que se realiza como responsabilidade pelo outro. Ou seja, a plena liberdade se realiza como justiça. Justiça é justificação de minha liberdade responsável aos apelos do outro. A liberdade que não se justifica na forma de justiça, é uma liberdade vazia, “ego-ista”. Em todos os casos, a liberdade existe como liberdade interpelada. A liberdade natural, tal como a modernidade a formulou, é uma categoria ontológica inexistente. Um mito. Só existe a liberdade histórica, a liberdade interpelada pelas relações do sujeito.
A abertura ética da alteridade não define que tipo de responsabilidade eu devo assumir. Não é possível aferir princípios universais, categorias lógicas ou axiomas morais para agir corretamente. A alteridade é uma abertura que desafia o sujeito a responder em cada situação aos apelos concretos do outro. A grandeza de cada sujeito se mostrará na capacidade de responsabilidade pelo outro. Mas não está dito nem mandado por ninguém qual o código de normas a cumprir nem os princípios racionais a seguir nessa resposta. O sujeito deverá decidir em cada situação.

IHU On-Line - Em que aspectos o pensamento de Lévinas pode oferecer alternativas para o relativismo moral de nosso tempo?
Castor Ruiz - Uma das características de nosso tempo é a perda de fundamentação última dos valores. Neste sentido, a “acusação” de Nietzsche de que nós matamos a Deus se cumpre. A falta de um fundamento último, universal e necessário para os valores e códigos morais, pode nos deslizar para um relativismo permissivista onde tudo se tolera porque nada pode ser proposto como verdade moral. Como paliativo a tal relativismo se invoca a necessidade do consenso procedimental que deve definir o que é bom e justo pela maioria.
Para Lévinas, a alteridade humana não oferece princípios transcendentais nem conceitos universais ou axiomas lógicos que nos possibilitem fundamentar racionalmente a ética. Em todas essas hipóteses, opera-se uma ontologização da alteridade, uma redução do infinito humano ao conceito. Contudo, a alteridade humana opera como limiar ético necessário. Ninguém pode se omitir da relação com outro. A alteridade aparece, então, como epifania, manifestação do outro na sua dignidade. A alteridade humana se apresenta como o horizonte ético necessário da ação. Consequentemente, ela se propõe como critério ético que avalia o bem e justiça de nossos atos.
A alteridade humana não propõe um código fixo de valores, nem princípios abstratos a seguir. Ela não diz o que fazer, mas se oferece como horizonte e limiar ético de nossa ação. Como defender, promover, ajudar, impulsionar a alteridade humana é algo aberto a cada circunstância. A abertura para outro me deixa a responsabilidade de decidir, em cada circunstância, o melhor meio de fazer. Porém, me coloca um critério ético intransponível para além do qual só existe a barbárie, a violência. Transgredir a alteridade humana como critério ético significa entrar no campo da violência. Daí que a alteridade se apresente como critério ético regulador da ação e concomitantemente deixe a responsabilidade dos sujeitos decidir como agir.

IHU On-Line - Em que aspectos o mundo pode ser diferente a partir da concepção do outro como um ser que merece respeito e consideração?
Castor Ruiz - Vivemos uma cultura do eu que cultua o individualismo como uma essência natural. Nossa sociedade naturalizou o interesse próprio e o tornou uma categoria política que regula as relações sociais sob a forma de competição contra o outro (mercado capitalista). A procura da vantagem individual se tornou um princípio ético do utilitarismo dominante. O outro foi reduzido a um competidor de quem devo defender-me ou a um cliente de quem posso aproveitar-me. O individualismo retirou o senso de responsabilidade ética pelo outro e o transferiu para instâncias abstratas (ontologizadas), o Estado.
Pensarmos uma sociedade e uma cultura a partir da alteridade humana implicaria, em primeiro lugar, pensar que o outro não é alguém que limita a liberdade, como reza o liberalismo, mas que minha liberdade se expande a partir da liberdade do outro. A relação com o outro me constitui como sujeito e me ajuda a crescer humanamente.
Temos que pensar na viabilidade de constituirmos uma cultura da alteridade, onde a responsabilidade pelo outro seja um componente ético de nosso relacionamento cotidiano. Onde a grandeza de uma pessoa se meça pela responsabilidade que vive, e não pelo lucro que teve. Não podemos transferir para instâncias formais a interpelação do outro, sob pena de fazer de cada relação humana uma forma de contrato social. Eu sou responsável, em primeira instância, pelo outro que me interpela.
Estamos, cada vez mais, reduzindo a relação com o outro à norma jurídica, isso denota o grau de individualismo a que estamos chegando. O direito é, em primeiro lugar, direito do outro. É o direito que reconheço no outro, assim como meu direito é um direito reconhecido pelos outros. De igual forma, temos que pensar uma justiça a partir das vítimas, e não uma justiça identificada com os procedimentos. Fazer justiça não é cumprir a lei e preservar a ordem, mas restaurar a injustiça das vítimas. A vítima é a alteridade negada na injustiça, e a justiça tem que se voltar para a vítima o critério do justo, e não às normas procedimentais.

IHU On-Line - No campo político, especificamente na democracia, como essa filosofia pode auxiliar a desenvolver o respeito pelas singularidades?
Castor Ruiz - Constituir uma sociedade a partir da alteridade humana tem um impacto sobre as instituições e as relações sociais. Destaco brevemente o aspecto da violência. Ainda que o pensamento de Lévinas seja metafísico, uma das preocupações mais claras é sua relação com a violência. Lévinas mostra como toda ontologia provoca um tipo de violência sobre o outro. O outro reduzido a conceito perde a capacidade de mostrar-se na singularidade do rosto próprio. Uma vez reduzido a conceito, fica fácil intervir sobre o outro de forma útil, instrumental e até violenta. Por sua vez, toda violência tem como condição de possibilidade a redução do outro à totalidade ontológica. Quando eu reconheço no outro um rosto singular, sua alteridade, minha possibilidade de violentá-lo, se esvai. Pelo contrário, quando o outro é só um número, uma estatística, uma imagem ou uma abstração (todas elas formas de ontologia), fica muito mais fácil intervir sobre ele de forma instrumental e até violenta.
Lévinas se pergunta como a cultura ocidental e suas sociedades tão civilizadas foram e são tão violentas. Onde a civilização ocidental aterrissou, a violência (a barbárie) foi junto. Seu diagnóstico aponta ao fato de que a filosofia ocidental se caracteriza por ter criado uma cultura da ontologia, onde a alteridade humana é constantemente assimilada em categorias de totalidade. Toda forma de totalidade ontológica abre a porta para implementar práticas de totalitarismo político. Pensarmos uma cultura não violenta nos desafia a criarmos uma cultura da alteridade em que nos tornemos responsáveis pelo outro em primeira instância.
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Fonte: IHU in Revista online, 21/06/2010

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