terça-feira, 29 de junho de 2010

Dívidas morais

JOÃO PEREIRA COUTINHO*

Tocqueville

 
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É precisamente nestes momentos de confusão mental que
devemos revisitar os clássicos

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O MUNDO está alarmado com a dívida. Ou, pelo menos, a circunspecta revista "The Economist", que dedica uma edição ao problema.

No último meio século, o Ocidente viveu do crédito. Governos, empresas, famílias, toda a gente entrou na orgia de gastar agora e pagar depois. Até ao momento em que não era mais possível pagar depois.

A situação, pela sua escala e consequência, é nova na história da espécie. No século 19, quem não pagava os seus empréstimos terminava nos calabouços, com a reputação arruinada. Na primeira metade do século 20, o medo recorrente da carestia e da depressão convidava à poupança e à prudência.

O tsunami aconteceu depois da Segunda Guerra Mundial e um pequeno pedaço de plástico simbolizava o novo espírito: o cartão de crédito. O Ocidente viveu 70 anos a cavalgar nos seus cartões. E agora?

A consequência mais imediata é que o Ocidente vai conhecer anos de aperto para pôr as contas em ordem. Mas o mais irônico é que pôr as contas em ordem e resolver os déficits que devoram os Estados pode abrandar a economia e fazê-la entrar em novos ciclos de recessão.

O Ocidente está num belo "cul-de-sac": se emagrece, pode morrer de anorexia; se não emagrece, também, mas apenas porque será cada vez mais difícil financiar-se nos mercados internacionais, que deixarão o glutão morrer de fome. A Grécia sabe disso. Portugal sabe disso.

Não sou economista para resolver o dilema. E é precisamente nestes momentos de confusão mental que devemos revisitar os clássicos. É o que faz Steven Malanga em ensaio primoroso para a "City Journal" sobre as lições de Alexis de Toqueville. "Whatever Happened to the Work Ethic?", pergunta ele. É uma boa pergunta.

Tocqueville escreveu "Da Democracia na América" entre 1835 e 1840. E nesse livro de viagens, fresco magistral sobre a "era democrática" nascente, deixou uma lição que importa relembrar: a prosperidade da América era uma consequência do equilíbrio operado pelos nativos entre o interesse próprio e o interesse geral; entre a ambição pessoal e o respeito por valores éticos (e religiosos) fundamentais. Sem esse equilíbrio, feito de "moderação" e "disciplina", o milagre americano não teria sido possível.

Concordo com Steven Malanga sobre a importância desse ensinamento. E então reparo como Tocqueville, vivendo um século depois de Adam Smith, o fundador intelectual do capitalismo, já não parecia partilhar do otimismo "iluminista" do escocês.

Para Smith, o mercado não apenas exigia certas virtudes moderadoras (autocontrole, honestidade, civilidade etc.) como seria também capaz de as sustentar "invisivelmente": sem essas virtudes, não haveria vantagens para o açougueiro, para o cervejeiro ou para o padeiro, que assim perderiam clientela.

Para Tocqueville, o mercado livre poderia não ser capaz de, por si só, promover continuamente as virtudes salubres de Smith. Poderia até arrasar com elas se os indivíduos, em busca da mera gratificação pessoal, perdessem de vista suas naturezas como seres sociais e o respeito a instituições ou valores que sobreviveram aos "testes do tempo".

Quando lemos Tocqueville, aprendemos de imediato que os problemas econômicos do Ocidente são, primeiro, problemas políticos. Eles assentam na forma "despótica" como diferentes governos, assumindo as piores formas de paternalismo, corrompem os seus eleitorados com níveis de vida que não correspondem à produtividade real.

É assim que, nas palavras de Tocqueville, os eleitores do Ocidente vivem uma "minoridade perpétua": porque são mantidos, eleição após eleição, em jardins de infância, feitos de divertimento e dependência.

Mas a "dívida" que assombra as democracias liberais não é apenas uma consequência do "despotismo democrático" que leva os governos a infantilizar as suas populações.

O modo de vida do último meio século, com as consequências conhecidas, constitui um problema radicalmente moral. E, sendo um problema moral, coloca uma questão premente: será que o capitalismo pode operar de forma sadia quando noções antiquadas de "honestidade", "dever", "honra", "poupança" e mesmo "sacrifício" desaparecem completamente do nosso mapa mental e social?

Imagino Tocqueville, do outro lado da eternidade, a olhar para nós e a sorrir de compaixão.
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Fonte: Folha online, 29/06/2010

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