domingo, 20 de junho de 2010

As torcidas celestiais

Rubem Alves*
Embora os doutores da Igreja ainda não tenham se dado conta da gravidade da situação, é inquestionável que o jogo de futebol tem profundas implicações teológicas, algumas delas beirando à heresia.

Dei-me conta das relações entre o futebol e a religião quando jovem estudava num seminário protestante. Embora eu nunca tivesse sido bom de bola — cabecear uma bola que caia das alturas era coisa que me aterrorizava —, era um torcedor fiel do time do seminário. As partidas eram sacramentadas com um prelúdio litúrgico antes que o juiz soprasse o apito. Os dois times reuniam-se no meio do campo e os jogadores, cabeça baixa, contritos, oravam. Embora eu me encontrasse longe e nunca tivesse ouvido os pedidos que eram feitos, uma coisa era clara: Deus estava presente. Estava sendo invocado para supervisionar o jogo. Se Deus era invocado então o jogo de futebol estava em suas mãos e, tivesse Dante vivido em nossos tempos, sua Divina Comédia teria um capítulo dedicado ao futebol.

Protestantes, orava-se ao único Deus todo poderoso que não admite despachantes espirituais de segundo escalão. Ele mesmo cuida de todas as coisas. Seria impróprio pedir-lhe que favorecesse um dos times. Que vença o melhor! Diga-se de passagem que, embora não se fizesse esse pedido, estava teologicamente implícito que Deus é que determina o resultado do jogo posto que, sendo onipotente, não é concebível imaginar que um gol pudesse acontecer sem que o fosse por sua vontade. Tudo o que acontece, acontece porque Deus quer. O jogo, vivido pelos jogadores e pela torcida como algo a ser resolvido no futuro, nos 90 minutos que se seguiriam, era a coisa vista do lado de cá. Mas, visto do lado de lá, “sub specie aeternitais”, com os olhos de Deus, que é onisciente e onipotente, o placar já estava definido (eliminar: resultado já era coisa do passado). A divina decisão já estava feita. Isso está de acordo com a consoladora doutrina da dupla predestinação que afirma que tudo o que acontece de maravilhoso ou horrível acontece porque Deus o quis.

Iniciada a partida os jogadores se esqueciam da oração e dos olhos atentos de Deus e não era infrequente que a partida degenerasse em brigas e palavrões.

Isso, no campo de futebol de um seminário protestante. Mas no mundo profano as coisas são diferentes. Que uma partida de futebol é um evento é religioso não resta a menor dúvida. Nunca vi visita de papa ou milagre de santo que provocasse entusiasmo tamanho. Entusiasmo, como se sabe, é uma palavra sagrada que quer dizer “ter um deus dentro de si.” E os torcedores realmente devotos terminam num estado de transe semelhante ao que acontece nos terreiros de candomblé.

Os preparativos religiosos para a partida começam muito antes. Acendem-se velas, rezam-se novenas, fazem-se despachos em encruzilhadas. Os jogadores, ao entrar em campo, benzem-se, fazem o sinal da cruz, beijam santinhos, rezam baixinho, o mesmo acontecendo com a torcida.

É óbvio que, às almas religiosas, as hostes divinas, em número maior que o de torcedores presentes, enchem os espaços do estádio. Se assim não fosse, de que adiantariam as invocações e promessas? Os anjos nos seus vários níveis, azuis e amarelos, serafins, querubins, interrompem a atividade que os ocupará por toda a eternidade, qual seja, a de cantar o “Sanctus” e os “Améns” (no céu todos estão de acordo permanentemente ), abandonam o coro para assistir à uma partida, comendo algodão doce feito de nuvens. Até Deus fica feliz. Como é boa a trégua no canto gregoriano.

Treinada nos mistérios rigorosos da teologia, minha mente vacila. Não consigo prever as convulsões celestiais que um jogo de futebol poderá provocar. Deus vê o jogo, é claro, pois ele é onisciente. Mas o que importa é a pergunta: ele torce ou não torce? Grita “goool”? Jogadores e torcedores afirmam que os santos se intrometem, dando uma ajudazinha fazendo com que a bola fraca se desvie no zagueiro e engane o goleiro. “Obrigado, meu Santo Expedito! Obrigado Padim Padre Cícero! Foi por Deus!” O futebol está cheio de sinais de milagres. Quem assiste a uma partida de futebol não precisa ir a Fátima.

Imaginemos, ao contrário, que Deus fique de fora, não interfira. Nesse caso a partida fica sendo um evento durante o qual a onipotência divina está desativada, no campo. Coisas acontecem sem que Deus queira! Mas se algo acontece sem que Deus queira, onde está a sua onipotência? É como se Deus deixasse de ser Deus. E isso é impensável. É heresia.

E se torcedores de times diferentes invocam o mesmo santo pedindo a vitória? Como é que esse santo vai tomar a decisão? Protegerá o time de que é torcedor? Ou se valerá do recurso de “cara ou coroa”?

E as entidades celestiais? Formarão torcidas, cada uma torcendo por um time? Nesse caso a divina harmonia do universo estaria rompida. Os céus: terão eles se tornado num hospício habitado por grupos esquizofrênicos que torcem por times diferentes?

Todas essas questões passam pela cabeça de um teólogo. E ele teme que, numa simples partida de futebol, o destino do universo esteja em jogo. Afinal de contas, como todo torcedor sabe, cada partida de futebol é uma luta entre os exércitos celestiais e as hostes infernais...
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*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
Fonte: Correio Popular online, 20/06/2010

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