José Eisenberg*
"Ofusca o curioso fato de que é dos quintais da esquerda do século XX que brotam as respostas mais provocantes ao “vil materialismo” de Ditchkins e aos “fundamentalismos” religiosos que os sustentam, na visão de Eagleton", escreve José Eisenberg.
Segundo ele, "em contextos e debates distintos, Terry Eagleton e Jürgen Habermas acabaram ambos fazendo, cada um a sua maneira, uma surpreendente defesa da importância da fé e da religião para a edificação de um mundo regido pela razão. Escreveram, digamos, sobre Deus, através das linhas tortas da razão".
Segundo ele, "em contextos e debates distintos, Terry Eagleton e Jürgen Habermas acabaram ambos fazendo, cada um a sua maneira, uma surpreendente defesa da importância da fé e da religião para a edificação de um mundo regido pela razão. Escreveram, digamos, sobre Deus, através das linhas tortas da razão".
Eis o artigo.
São duras as palavras com que Terry Eagleton encerra a sua resenha de “Deus, um delírio” (Companhia das Letras) de Richard Dawkins, para a “London Review of Books”: “Dawkins, no entanto, poderia ter nos dito tudo isso sem ser tão teologicamente ignorante, e tão assustadoramente insultante aos seus colegas cientistas que discordam dele. Ademais, Dawkins poderia ter evitado ser ele mesmo o segundo indivíduo mais citado em seu próprio livro — presumindo, é claro, que Deus conte como um individuo.” Ao lado de “Deus não é grande: como a religião envenena tudo” (Ediouro), de Christopher Hitchens, o livro de Richard Dawkins tornou-se um ícone do neoateísmo mais radical do início deste século, e quando, dois anos depois, o mesmo Terry Eagleton proferiu uma série de conferências na Universidade de Yale, manteve-se fiel ao tom vigoroso e ácido de suas palavras, “transformando” o cientista e o polemista em única criatura: Ditchkins.
Dos quintais da esquerda, respostas ao materialismo
A publicação das conferências de Yale sob o título “Razão, fé e revolução” (2009) — do qual um trecho está traduzido para o português no último volume da revista “Serrote” — não mudou o tom do debate, e a prosa sarcástica do crítico literário travestido de teólogo marxista acaba ofuscando aspectos importantes de uma renovada discussão que se trava entre teologia e filosofia acerca da autoridade e legitimidade da fé e da razão. Ofusca, ademais, o curioso fato de que é dos quintais da esquerda do século XX que brotam as respostas mais provocantes ao “vil materialismo” de Ditchkins e aos “fundamentalismos” religiosos que os sustentam, na visão de Eagleton.
Enquanto Eagleton digladiava contra Ditchkins, em um outro debate, organizado em Munique em 2007, quatro teólogos jesuítas convidaram o filósofo Jürgen Habermas para escrever um ensaio e discutir com eles a relação entre fé e razão. O livro “Ein Bewußtein von dem, was fehlt” (2008) foi traduzido este ano para o inglês sob o título “An awareness of what is missing”.
A tradução para o português é difícil. O conceito Bewußtein tem história na filosofia alemã, de Wolff e Schlegel a Husserl e Gadamer, sempre associado a uma dimensão da consciência que está reflexivamente articulada a uma ciência do mundo vivido (no sentido de tomar “ciência” de algo). Seria uma (cons)ciência do que está faltando o que Habermas e estes filósofos antes dele buscavam exprimir? Em contextos e debates distintos, Terry Eagleton e Jürgen Habermas acabaram ambos fazendo, cada um a sua maneira, uma surpreendente defesa da importância da fé e da religião para a edificação de um mundo regido pela razão. Escreveram, digamos, sobre Deus, através das linhas tortas da razão.
As palavras sarcásticas que Eagleton dirige ao livro de Dawkins expressam uma revolta contra o que lhe parece um secularismo narcisista e alheio ao papel da religião e da fé no mundo moderno, ordenado pela razão mas alimentado por ódios religiosos oriundos de eventos como o 11 de setembro de 2001. A interpretar o mundo anglo-americano a partir da intervenção de Eagleton, o debate parece se encontrar polarizado entre modulações de um fundamentalismo cristão que acreditam sofrer a perseguição de uma ciência antihumanista, e uma filosofia racionalista que se vitimiza diante do crescente radicalismo destes cristãos que acreditam estar ameaçados por outros fundamentalismos religiosos concorrentes e mais perigosos.
Neste contexto, a retórica com que Terry Eagleton ataca ambos os lados contrasta com o aspecto moderado, quase ponderado que, na substância, seu argumento sugere. Afinal, o critico literário inglês quer defender a religião de um racionalismo pueril que busque colonizar as formas institucionalizadas de organização da fé, mas quer também defender a filosofia de um fideísmo paternalista, diria até mesmo imperialista, que tem a pretensão de vigilantemente alertar o mundo contra o perigo que outras religiões representam para o ocidente secularizado.
Uma defesa da religião, sem que haja uma conversão
É neste sentido que Eagleton transforma o 11 de Setembro no marco de nascimento do neoateísmo representado por Ditchkins. Para combater o inimigo generalizado “Islamismo”, Ditchkins volta a sua artilharia contra toda forma de crença religiosa.
E Eagleton vê razões para defender a religião, em particular os religiosos, contra este ataque; sem que isto signifique, entretanto, um gesto de conversão para a fé.
Habermas, como Eagleton, oferece motivos histórico-sociológicos para desejar a permanência de visões de mundo religiosas no ocidente secularizado, conferindo, inclusive um sentido epocal ao 11 de Setembro muito parecido com o de Eagleton. Diferentemente de seu colega inglês, entretanto, Habermas não se limita aos embates entre religião e filosofia pelo monopólio da interpretação do mundo. Seu embate não se dirige aos neoateístas, a quem, aliás, Habermas dá pouca importância; seu debate é com teólogos jesuítas, intelectuais da religião ocupados em compreender seu momento mais sublime (a fé), sempre sob a égide dos preceitos da razão. Tomistas.
Para além de razões histórico-sociológicas, Habermas busca oferecer razões filosóficas para crer na necessidade da fé, até mesmo em um mundo sob o império da razão. O racionalismo habermasiano, em sua persecução de uma reconciliação entre fé e razão acaba rendendo-se a um argumento que denuncia sua tímida desconfiança da razão e de sua capacidade de fazer assegurar o império da filosofia: há algo faltando em um ocidente completamente secularizado; e a razão, para manter seu império, precisa ter (cons)ciência (Bewußtein) do que falta a ela.
Falta que certas coisas além da razão fazem ao mundo
Com o conceito de Bewußtein, Habermas busca manter-se coerente à superação da filosofia da consciência que seu projeto pós-metafísico propõe, e assim, busca expressar a ideia de uma (cons)ciência projetada para o mundo. Em sua Tanner Lecture que proferiu em 1986 nos Estados Unidos sobre direito e moralidade, Habermas elaborou a ideia de um momento de “indisponibilidade” (unverfügbar) que a razão teria perdido com a secularização do jusnaturalismo no período pré-moderno; hoje também nos falta, argumenta Habermas em seu debate com os jesuítas, algo que não está neste mundo, isto é, que nos foi indisponível pelo seu caráter divino, mas que hoje permanece desta forma por designar uma falta que certas coisas, que estão além da razão, fazem ao mundo.
Se para uns este é o mistério, para outros é o motivo de preocupação. Para os interlocutores jesuítas de Habermas, falta fé aos homens, sem prejuízo ao império da razão na adjudicação de tudo que cai sobre seu juízo. Falta compreender, ademais, que nem tudo está sob o jugo da razão, a começar (e terminar) pela fé. Para Habermas, porém, a fé que falta, falta ao mundo, não aos fiéis, e quando Habermas faz referência àquilo que está indisponível e a uma (cons)ciência desta falta, resta saber, como com provocou Stanley Fish na sua resenha do livro para o “New York Times”, se a razão pode conhecer o que falta a ela.
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*Professor de Filosofia do Direito da UFRJ, em artigo publicado no jornal O Globo, 26-06-2010. __________________________
Fonte: IHU online, 27/06/2010
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