sexta-feira, 25 de junho de 2010

Umbigos em forma

Entrevista:
Para filósofo, excessiva preocupação com o corpo
 é fruto do enfraquecimento dos vínculos sociais.


Francisco Ortega: "Atualmente toleramos transgressões morais, liberdade sexual, desde que nada disso desequilibre as taxas de colesterol"

Um corpo são numa mente insana. A frase, uma distorção da máxima preconizada pelo poeta romano Juvenal no século 2º, traduz o mal do nosso século. Pode-se dizer que essa é a síntese do pensamento do filósofo espanhol Francisco Ortega, doutor em filosofia pela Universidade de Bielefeld, na Alemanha, e radicado no Brasil há 14 anos. "O que eu sou verdadeiramente não são meus sonhos, realizações, crenças ou ideais, mas o tamanho da minha barriga", diz Ortega, assustado com a preocupação excessiva das pessoas com o corpo.
O sentido da vida, diz o filósofo, deixou de refletir um processo com finalidades de longo prazo e objetivos extrapessoais. Antigamente, queríamos ter saúde e longevidade para cumprir tarefas familiares, sociais, religiosas e sentimentais, afirma. Hoje, o corpo substituiu tudo isso. Transformou-se em nosso parceiro privilegiado. "Atualmente toleramos transgressões morais, liberdade sexual, desde que nada disso desequilibre as taxas de colesterol."
Ortega dá aulas no Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Autor de seis livros e diversos artigos, ele vê as modificações corporais na cultura contemporânea como efeito do enfraquecimento dos vínculos sociais dos indivíduos, um fenômeno que chama de "bioascetismo" num trabalho que acaba de ser publicado em "100.000 Anos de Beleza", uma coletânea de artigos de especialistas do mundo inteiro organizada pela Fundação L'Oréal.
O professor recebeu o Valor em seu apartamento no Rio, onde vive com a mulher, brasileira, a filha de 3 anos, um gato, seus livros e muitos brinquedos espalhados por todo canto. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Valor: O sr. diz que o corpo se tornou parceiro privilegiado das pessoas. O que isso significa?
Francisco Ortega: O fato de sentir-se bem e ter uma boa aparência tornou-se o valor que norteia todo tipo de comportamento. Os consultórios começaram a ficar cheios de pessoas obcecadas pela alimentação natural. Gente que não come gorduras e doces e escolhe cuidadosamente os produtos que consome. Esses são os critérios da biossociabilidade, que pode levar, por sua vez, a uma nova patologia: a ortorexia, um distúrbio alimentar semelhante à anorexia e à bulimia, caracterizado por uma obsessão pela alimentação saudável.

Valor: Já no século XVII os homens usavam perucas e maquiagem e as mulheres, espartilhos, em nome da beleza. Já havia casos de anorexia, movidos por questões religiosas. O que é essencialmente novo nessa busca pelo corpo belo?
Ortega: O corpo ideal, hoje, é digital e cheio de retoques. As revistas trabalham com Fotoshop, com essa ideia de que tem que apagar qualquer gordurinha. É um corpo sem carne, como descreve Paula Sibilia no "Pavor da Carne". É apenas um "corpo imagem", sem matéria. Deseja-se um corpo que não existe. Por isso penso na ambiguidade, por exemplo, das adolescentes que se tatuam e colocam piercings genitais. Ninguém vê, só os parceiros sexuais. Será que, além da moda, essas intervenções mais radicais não seriam uma maneira de recuperar esse corpo? Como quem diz num apelo: este corpo existe, ele sente dor. Marcar o corpo é uma busca por autenticidade em uma sociedade sujeita ao domínio da aparência. Essas modificações são hiperdolorosas. A questão com o corpo é ambígua. Por um lado, excesso do cuidado; por outro, exagero do descuido.

Valor: Nunca tivemos tanta obesidade. É disso que se trata o exagero do descuido?
Ortega: Sim. A gente vive numa sociedade de tanto controle de riscos que acaba provocando comportamentos opostos, como aqueles sujeitos que se entopem de sanduíches ou fazem sexo sem camisinha. Esses fenômenos coabitam na mesma cultura. Todo mundo sabe o que faz bem para a saúde. Mas a pulsão de transgredir e testar limites é humana.

Valor: O que é bioascetismo?
Ortega: Geralmente a gente associa ascese à renúncia do prazer. Mas, na concepção clássica do termo, havia também outra ideia: para ser reconhecido pelos pares como uma pessoa ética, o indivíduo deveria mostrar moderação. Esse cuidado de si não era narcisista ou egoísta, pelo contrário, visava o outro e a cidade. Eu e o Jurandir Freire, meio de brincadeira, acrescentamos o bio ao ascese, para distinguir do termo clássico. Será que essas asceses contemporâneas de alimentação, malhação e cirurgias plásticas também visam algo mais? Ou o bioascetismo indica que se perdeu esse elo com a coletividade?

Valor: Jurandir Freire diz que "na cultura narcísica o modo mais eficiente de não se fazer notar é ser como todo mundo". Ou seja, o sujeito malha para se esconder, não para se exibir?
Ortega: Claro, é isso. A única forma de me esconder é me uniformizando. A compulsão da boa forma se tornou, assim, a prática de proteção da identidade. O que é uma coisa horrível, pois abro mão de minha singularidade.

Valor: Como a promessa da ciência de adiar a velhice e a morte interfere na subjetividade das pessoas?
Ortega: Veja bem, às vezes fui criticado quando disse que a terceira idade era a última tentativa bioascética de permanecer jovem e por dentro da moda. É uma questão ambígua. Muitos idosos se beneficiam cuidando do corpo. Isso é positivo, pois favorece, além da prevenção de doenças, uma reconstrução de laços sociais. A questão é o excesso.

Valor: E quais são os excessos?
Ortega: Querer modificar o corpo incessantemente. Faço uma plástica e depois outra e outra. É como cigarro, vicia. Um dia desses vi uma entrevista com a Hebe Camargo ainda se recuperando de um câncer. Ela disse que logo estaria com um namorado. Ela tem todo o direito de namorar, mas isso é um sintoma dos nossos tempos. Ninguém quer aceitar a idade, a doença ou mesmo a própria finitude. Quanto menos poder tivermos sobre o mundo em que vivemos, mais procuraremos transformar o próprio corpo.

Valor: A nossa cultura prega a negação da própria biologia?
Ortega: Olha a gravidez da Angélica e da Cláudia Leite. É impressionante. O maior mérito da maternidade é parir e em 15 dias ter a barriga que se tinha antes, é um absurdo. Não posso a todo custo querer que minha corporeidade seja diferente. Há muita insatisfação e sofrimento por isso.

Valor: Qual é o nosso futuro?
Ortega: Em 2012 o Brasil terá quase 2 milhões de pessoas com mais de 80 anos. Todas as pesquisas dizem que, para viver mais, temos que reduzir pela metade o consumo calórico...

Valor: A vida será cada vez mais longa e tediosa, é isso?
Ortega: Mas, com toda essa oferta de comida maravilhosa, será difícil. A cultura do corpo cria muita infelicidade. Será que podemos viver sem algum valor que permaneça depois de ele existir?
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Por Adriana Abujamra, para o Valor, do Rio
Fonte: Valor Econômico online, 25/06/2010

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