Padre José Oscar Beozzo
Entrevista
Há quase 45 anos era encerrado o Concílio Vaticano II ou o XXI Concílio Ecumênico da Igreja Católica, considerado a maior conferência da Igreja Católica do século 20. Convocado pelo papa João XXIII, o Concílio queria promover o “aggiornamento”, a atualização da Igreja e comprometê-la na busca da unidade entre os cristãos por meio do seu engajamento no movimento ecumênico. O Concílio Vaticano II foi anunciado inesperadamente por João XXIII, na festa da conversão do apóstolo Paulo, a 25 de janeiro de 1959. Algum tempo depois toda a Igreja, bispos, faculdades de teologia, universidades católicas e organismos da Cúria Romana foram consultados acerca das necessidades da Igreja e qual deveria ser a agenda do Concílio. Com a criação das comissões preparatórias formadas por bispos e peritos, a partir de junho de 1960, começaram a ser elaborados os esquemas a serem submetidos aos bispos no Concílio.
A solene abertura do Vaticano II, na presença de mais de 2.500 padres conciliares vindos de todo o mundo, de teólogos e observadores das antigas Igrejas orientais, ortodoxos, anglicanos, protestantes e pentecostais de diferentes Igrejas aconteceu no dia 11 de outubro de 1962, durando quatro anos, formalmente, até o encerramento solene no dia 8 de dezembro de 1965, com a aprovação de 16 documentos conciliares, entre constituições (quatro), decretos (nove) e declarações (três). Para falar sobre o assunto, o JORNAL DE OPINIÃO entrevistou um dos maiores historiadores da Igreja na América Latina, o padre José Oscar Beozzo. Coordenador geral do Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular (CESEP), membro da Comissão de Estudos de História da Igreja na América Latina e no Caribe (CEHILA), autor de livros, entre os quais A Igreja do Brasil no Vaticano II, e vigário da paróquia São Benedito, na diocese de Lins (SP), padre Beozzo faz uma análise do assunto, refletindo também sobre a Igreja nos dias de hoje
Henrique Ulhoa
Em que contexto eclesial o papa João XXIII convocou o Concílio Vaticano II?
Quando ele assumiu, em novembro de 1958, o clima eclesial estava marcado pelo fim de uma época, o longo pontificado do papa Pio XII (1939 a 1958), que havia centralizado muito as decisões nas próprias mãos. Nesse período, havia certo impasse frente ao mundo moderno, a emergência dos novos países independentes da África e da Ásia. A Igreja precisava buscar novos caminhos. Por isso, creio que João XXIII captou muito bem esses desafios, propôs um remédio tradicional: convocar bispos do mundo inteiro para identificar junto quais eram os problemas, quais eram as novas tarefas e por onde a Igreja deveria andar. Consciente de sua dupla responsabilidade, primeiro, como bispo de Roma e depois como papa em relação ao conjunto da Igreja Católica, ele convocou um Sínodo para a Igreja de Roma e um Concílio para a Igreja universal.
O que o Concílio Vaticano II produziu em termos de documentos e de prática eclesial?
Creio que o mais importante foi um novo clima criado na Igreja, de busca e de diálogo interno, com as demais Igrejas cristãs e com o mundo. João XXIII ao convocar o Concílio disse que queria um concílio mais pastoral e sem condenações, pois isso já fora feito muitas vezes. Disse que queria um concílio que renovasse a vida da Igreja e que enfrentasse as questões do mundo moderno. Então a palavra um pouco mágica do concílio foi aggiornamento, palavra italiana que significa, colocar-se em dia, atualizar-se, renovar-se. Sua outra preocupação era, para além dos limites da Igreja Católica, a questão da unidade dos Cristãos. Ele colocou na agenda central do Concílio, a busca da unidade, o ecumenismo. E para além das Igrejas, abriu-se para um diálogo com o mundo moderno, frente às graves questõesda fome, da miséria, do sub-desenvolvimento da maioria das nações, da justiça, da guerra e da paz. Começou com um diálogo com as Igrejas Cristãs, como os ortodoxos e os protestantes, depois com as outras religiões e finalmente o diálogo com qualquer homem de boa vontade que estivesse disposto a trabalhar na construção da justiça e da paz. Então creio que esse novo clima, de encontro e diálogo e não de condenações ou exclusões, foi muito importante. É claro que o Concílio ao debruçar-se sobre a Igreja internamente (ad intra) e ao voltar-se para fora dela (ad extra), para o vasto mundo, produziu orientações e propostas que foram consignadas em documentos de distinto peso e valor pastoral ou doutrinal. Foram quatro os documentos de maior visibilidade e de densidade pastoral e doutrinal. Trata-se das quatro constituições, que são: a constituição dogmática Lumen Gentium, sobre Igreja; a Gaudium Et Spes, uma constituição pastoral,que era uma coisa nova, pois as constituições eram sempre dogmáticas; a constituição dogmática Dei Verbum, sobre a Palavra de Deus e a constituição sobre a liturgia a Sacrosanctum Concilium. Depois houve uma série de decretos e no final três declarações. A mais importante destas declarações foi a Dignitatis Humanae (DH) sobre a dignidade humana, tendo como foco a inviolável consciência de cada pessoa, inclusive na esfera da liberdade religiosa. As duas outras declarações foram sobre a educação Gravissum Educationis (GE) e a Nostra Aetate que trata do diálogo com as outras religiões, de modo especial o judaísmo, o islamismo, o hinduísmo e o budismo. Entre os decretos que tiveram maior peso encontram-se o do ecumenismo, Unitatis Redintegratio (UR); o das Igrejas Orientais, Orientalium Ecclesiarum (OE); o da vida religiosa, Perfectae Caritatis (PC), o do governo das dioceses, Christus Dominus (CD) e um que teve um impacto grande, pois toca a maioria das pessoas na Igreja que é o Apostolicam Actuositatem (AA), que fala do apostolado dos leigos e leigas, ancorando sua responsabilidade na Igreja e no mundo na própria vocação batismal de cada um deles. E ainda, um decreto que talvez seja o de menor valor, embora trate de um assunto muito importante que é o documento sobre os meios de comunicação social, Inter Mirifica (IM). Houve ainda dois decretos voltados para os presbíteros, Presbyterorum Ordinis (PO) e sua formação, Optatam Totius (OT).
Outra questão é a pratica eclesial que resultou do Concílio. Eu diria que duas foram muito visíveis, a reforma litúrgica, porque mexeu com a vida de cada pessoa com a entrada das línguas locais na liturgia e não apenas a manutenção do latim, e também a descentralização da Igreja, o exercício da colegialidade episcopal, com as conferências episcopais, os sínodos, chegando até aos conselhos de presbíteros, os conselhos pastorais paroquiais e os conselhos diocesanos de pastoral. E no caso do Brasil e da América Latina, esse espírito de participação e corresponsabilidade se reforçou com o surgimento das Comunidades Eclesiais de Base, apoiadas num maior protagonismo, bem na base, dos cristãos e cristãs batizados.
Como se deu a recepção do Concílio?
A recepção do Concílio foi muito desigual. Há Igrejas que abraçaram as orientações do Concílio com muita alegria e empenho como, por exemplo, a Igreja do Brasil. Na ultima sessão conciliar em 1965, aconteceram como que dois concílios paralelos, um acontecendo de manhã na Basílica de São Pedro e outro, à tarde e à noite, no local onde viviam os bispos brasileiros na Domus Mariae. Houve uma assembleia praticamente permanente da CNBB, para pensar como ia ser a recepção do Concílio no Brasil.
Os bispos discutiram e aprovaram, antes de voltarem para cá, o Plano de Pastoral de Conjunto, o PPC, um plano de cinco anos, no qual eles resumiram as grandes propostas do Concílio, em seis linhas pastorais e trataram de aplicálas à Igreja do Brasil. Outras Igrejas saíram muito desunidas do Concílio. Gastaram muito tempo, brigando internamente, divididos entre progressistas e conservadores, sem alcançar consenso e traçarem um rumo comum. Acredito que gastaram energia não na recepção e na aplicação do Concílio, mas num debate um pouco estéril e com dificuldade de achar o consenso que a Igreja do Brasil conseguiu, aprovando um plano de pastoral conjunto para o País. Isso faz a diferença na recepção na Europa, no Brasil e a recepção na América Latina, que encontrou em Medelín, em 1968, uma espécie de grande concílio latino-americano, a ocasião para traçar os rumos para a Igreja no continente, o que facilitou muito essa recepção latino-americana e caribenha do Concílio Vaticano II.
“João XXIII disse que queria um concílio mais pastoral e sem condenações,
um concílio que renovasse a vida da Igreja e
que enfrentasse as questões do
mundo moderno”
Considerando a opção preferencial pelos pobres, houve diferença na recepção e aplicação do Concílio na Igreja da Europa e da América Latina?
Sim e acredito que muito profunda. O Concílio foi o resultado de uma longa evolução em que a Igreja europeia teve um peso muito grande, sobretudo nos episcopados da França, Alemanha, Bélgica e Holanda. Foram esses episcopados e a teologia que vinha junto com eles que deram o formato do Concílio. Para eles o Concílio foi o ponto de chegada de uma longa evolução do movimento litúrgico, do movimento do apostolado dos leigos, do movimento bíblico, do movimento das semanas sociais de engajamento da Igreja nas questões sociais. Para o Brasil e para a América Latina ele também foi um ponto de chegada, mas, sobretudo um ponto de partida, pois foi um relançar de uma Igreja com rosto próprio. Podemos perceber que a Igreja da África pegou um caminho de inculturar o Evangelho, já a Igreja da Ásia colocou no centro da sua preocupação o diálogo com as grandes religiões do continente.
A America Latina repensou o Concílio na questão dos pobres, das desigualdades, dizendo: “isso é um escândalo diante de Deus.” Questionou-se que os países que se diziam cristãos tivessem ainda a maioria de sua população passando fome. Então, centrou-se aqui a atenção da Igreja na grande questão da libertação. Nisso, percebemos uma diferença forte. Na Europa, o próprio Bento XVI, quando era cardeal, disse que se esperava do Concílio uma primavera e em vez disso veio um inverno, pois se esperava grande renovação, e o que veio foi divisão e desânimo. Não é o mesmo sentimento que predominou entre as Igrejas daqui da América Latina ou da África e da Ásia onde o Concílio, praticamente, abriu caminhos para a inovação, para as Igrejas pensarem por si mesmas, para ganhar rosto próprio, ousar e pensar como o Evangelho pode ser vivido nas realidades locais. E a questão preferencial pelos pobres foi nitidamente uma opção da Igreja latino-americana, em Medelín, confirmada em Puebla e Santo Domingo e mais recentemente em Aparecida, onde ela foi apresentada com uma das questões ao lado da juventude.
A juventude, por exemplo, foi um assunto que não foi discutido no Concílio, mas em Medelín há um documento próprio para a juventude. A ênfase na catequese também foi muito importante na América Latina e não há um documento conciliar sobre a catequese, mas sim de Medellín.
Quais foram os bispos brasileiros que mais se destacaram no Concílio Vaticano II? Por quê?
Numa assembleia com 2.500 pessoas, não era fácil alguém se destacar como indivíduo, a não ser aquelas pessoas que tinham um papel institucional importante dentro do Concílio, como os moderadores que dirigiam as sessões ou quem estava à frente de algumas comissões de redação dos documentos conciliares. E nós não tivemos nenhum bispo brasileiro nesses postos chaves. Por outro lado, alguns brasileiros tiveram papel fundamental no Concílio, e eu cito, por exemplo, dom Helder Câmara, que no levantamento de um jornalista norte-americano na primeira sessão, falou que ele era um dos 20 atores mais importantes do Vaticano II. Mesmo não estando na presidência de nada, dom Helder ganhou destaque, pois foi ele quem animou a criação de alguns grupos de articulação do Concílio, como o grupo chamado de ecumênico que reunia os secretários e presidentes das conferências episcopais. Começou com 21 conferências e depois no fim eram 53 que se reuniam cada semana no local onde moravam os bispos brasileiros. Então, ele estava à frente de uma articulação, não vou dizer paralela, mas uma articulação oficiosa dentro do Concílio, que estudava a agenda, preparava os votos, tomava posições, escrevia para o papa e que foi um motor muito importante do Concílio, já que seu maior problema era a dispersão desses 2.500 padres conciliares, sem ter alguma coisa que vertebrasse a atuação da assembleia.
Depois o episcopado brasileiro esteve muito empenhado noutro grupo de articulação, o da Igreja dos pobres, no qual os bispos brasileiros foram os mais numerosos. O grupo chegou a congregar uns 80 bispos. No final tomou um compromisso que teve uma repercussão enorme, ao firmarem o assim chamado “Pacto das Catacumbas”. Eles firmaram entre si o compromisso de viver uma vida simples, de não ter carro, conta bancária, morar entre os pobres. Se tivessem terras da Igreja nas suas dioceses, as entregariam aos lavradores. Esse compromisso teve um impacto muito forte, com uns 500 bispos assinando-o ao final do Concílio. Havia também um grupinho de uns 10 ou 12 bispos que trabalharam sem ser presidentes ou secretários em diferentes comissões conciliares, dentre eles dom Aloísio Lorscheider, membro da Comissão de Ecumenismo ou dom Helder Câmara na Comissão do Apostolado dos Leigos e da Igreja no Mundo de hoje. Eu diria que a Igreja do Brasil não brilhou nas estruturas formais do Concílio, mas foi extremamente importante nas estruturas informais. Além disso, agiu articuladamente aportando seu voto consciente em questões cruciais do Concílio. Como o terceiro episcopado mais numeroso, depois do da Itália e do dos Estados Unidos, este voto articulado sempre tinha um peso importante no conjunto da assembleia conciliar.
Mesmo passados quase 45 anos, o Concílio Vaticano II continua em discussão. Afinal, ele terminou ou não?
Até hoje quando a gente se reúne para celebrar a missa, nós recitamos o credo do Concílio de Niceia, do ano 325 (risos). Os Concílios não são eventos que se esgotam na sua realização. São eventos que podemos chamar de longa duração, é um repensar a Igreja, traçar rumos que continuam tendo sua importância e influência mesmo séculos depois. O Concílio de Trento (1545-1563), por exemplo, aconteceu há mais de 400 e tantos anos e ainda se estava lutando para colocar em prática muitas das suas determinações. E mesmo que muita gente tenha dito que o Concílio Vaticano II encerrou a época Tridentina, 45 anos depois vemos que não foi bem assim. Pois estão voltando, por exemplo a missa em latim e outras práticas tipicamente tridentinas. Dessa forma, não se encerra um concílio simplesmente ao se propor algo novo, mas se acrescenta. O concílio é uma mirada para um horizonte posto lá na frente, não um evento de curta duração. Neste sentido, estamos apenas engatinhando para colocar em prática e plantar no coração da Igreja as melhores intuições do Vaticano II.
Que avaliação o senhor faz do pontificado do papa João Paulo II mediante as deliberações do Concílio Vaticano II?
Na época do Concílio, João Paulo II era bispo em Cracóvia, na Polônia. Fez parte da comissão que preparava o esquema da Gaudium et Spes. Vinha de um país que fazia parte da cortina de ferro. Estas preocupações não eram nossas ou da Europa Ocidental, de pensar como você vai ser Igreja em estados que se declaravam, não só laicos, mas também ateus e de maneira militante, inclusive ensinando o ateísmo nas escolas e proibindo qualquer presença pública da Igreja na sociedade. Então ele trouxe essa sensibilidade, essa contribuição para dentro do Concílio, de Igrejas que lutaram para sobreviver em condições muito adversas. Eu acho que do outro lado, isso era um limite para ele. Creio que ele teve muita crispação em relação à America Latina, porque aquele problema da Polônia frente ao comunismo, não era o sofrimento que nos afligia. Aqui para nós era o sofrimento que o capitalismo infligia para a maioria da população. Então, para ele falar contra o capitalismo era como se fosse apoiar o comunismo. Isso gerou muita confusão e causou muitos problemas em países latino-americanos como Nicarágua e Brasil. Porque ele vinha duma experiência muito importante, mas que não era aplicável ao restante do mundo. Então, essa sua justificada alergia ao comunismo o fazia muitas vezes aproximar-se da política norte-americana que era justamente a que aqui fazia mal para nós, provocando guerras como as que devastaram por tanto tempo, na época de Reagan, a Nicaragua, El Salvador de dom Oscar Romero ou a Guatemala de tantos mártires entre catequistas e delegados da Palavra nas comunidades. Portanto, neste sentido, eu diria que João Paulo II é um papa do Concílio, que lutou para levá-lo adiante, mas era tributário de uma certa visão do Concílio que não foi a mesma de uma grande parte dos bispos e Igrejas da America Latina, nem da África.
Precisamos de um Concílio Vaticano III ou, no atual contexto eclesial, essa medida apresentaria riscos?
Eu colocaria a questão de outro jeito. Precisamos manter permanentemente dentro da Igreja um processo conciliar. Quero dizer, que deve ser uma Igreja que coloca no coração de sua atuação e vivência, aquilo que dom Luciano Mendes cunhou de maneira feliz em Puebla e que ele chamou de “comunhão e participação”. Então é um processo que convoca à participação, ao protagonismo dos leigos e leigas, a um jeito de ser Igreja, comunitário e fraterno, chegando até a menor comunidade para que as pessoas se sintam Igreja e para que elas saibam que podem e devem participar, tomar decisões, se arriscar, assumir novos ministérios. Neste sentido, a Igreja precisa de um processo conciliar, porque está de volta uma demasiada centralização. Em vez de colegialidade, há muita clericalização. Em vez de uma Igreja cuja definição central está no batismo e não no sacramento da ordem, que sempre é uma coisa para poucos. É hora de se reconhecer que todos os batizados e batizadas carregam um sacerdócio real, profético, de serviço, de ministérios e isso faz falta neste momento. Agora, convocar um novo concílio, no momento em que vamos numa direção contrária de pouca participação, de ênfase novamente numa centralização, ou de uma ênfase no ministério ordenado, e não no sacerdócio comum dos fiéis, acredito que um novo concílio poderia consagrar alguns retrocessos. Portanto é melhor não haver outro concílio de imediato. Eu diria que um processo conciliar sim, mas um concílio, neste momento, não.
___________________________Fonte: Jornal Opinião - 31/5 a 6/6/2010
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