segunda-feira, 21 de junho de 2010

Repetência e aprendizado

Naercio Menezes Filho*

O Conselho Nacional de Educação está votando nesta semana uma proposta para acabar com a reprovação nos três primeiros anos do ensino fundamental nas escolas públicas brasileiras. O objetivo é evitar que as crianças sejam punidas com a reprovação antes que elas tenham o tempo necessário para completar a primeira parte do seu aprendizado, principalmente agora que a entrada na escola acontece aos seis anos de idade. Essa proposta faz sentido? Será que o fim da repetência iria diminuir mais a qualidade da educação no Brasil?

A discussão sobre reprovação é antiga. Todos nós já ouvimos alguma história sobre a época em que as escolas públicas eram as melhores no Brasil. Na verdade, era mais fácil ter qualidade quando as escolas públicas atendiam apenas a elite da sociedade brasileira. Em 1940, havia somente 3,5 milhões de alunos no ensino básico, para uma população de 41 milhões de pessoas, em sua maior parte composta de crianças e jovens. Hoje em dia há cerca de 40 milhões de alunos no ensino básico, para uma população de 190 milhões (uma taxa de 21%, para uma população bem mais velha, versus 8,5% em 1940).

Apesar da entrada maciça de novos alunos com nível sócio-econômico mais baixo, as escolas públicas tentaram manter seu nível de exigência. Isso fez a taxa de repetência aumentar fortemente, chegando a atingir 40% na primeira série. Os novos alunos não conseguiam fazer as provas, eram reprovados e tinham que cursar novamente a série. Muitos desistiam e saiam da escola. Foi assim que, a partir da década de 80, surgiram os ciclos de progressão continuada, em que os alunos não podem ser reprovados por deficiências de aprendizado nas primeiras séries, apenas por faltas. Como resultado desses programas, a taxa de repetência hoje em dia gira torno de 20%, ainda elevada para os padrões mundiais (na Inglaterra, por exemplo, não existe repetência).

Várias pesquisas mostram que a repetência é prejudicial tanto para os alunos como para a sociedade. Altos índices de repetência fazem com que estados e municípios gastem recursos com alunos que cursam a mesma série por vários anos, ao invés de disponibilizar salas para alunos de ensino infantil e médio, que ainda não estão suficientemente atendidos. Além disso, um estudo recente* comparou as taxas de abandono e de aprendizado nas escolas que adotam o regime de progressão continuada com relação às que mantém o regime seriado, em que os alunos reprovados são obrigados a repetir a série. O abandono é significativamente menor nas primeiras. Como resultado desses programas, cerca de 800 mil alunos desistem de abandonar a escola todos os anos. A sociedade agradece, pois fora da escola esses jovens poderiam engajar-se em atividades ilícitas que causariam grandes perdas de bem-estar. Não adianta educar somente a elite.

Apesar desses efeitos positivos, o regime de ciclos é questionado em quase todas as eleições estaduais e municipais. Candidatos atribuem ao regime de ciclos a culpa pela péssima qualidade da educação no seu município e prometem abolir o programa. Pais acreditam que seus filhos aprendem pouco por causa da falta de repetência. Professores tampouco gostam do programa, pois perdem autoridade frente aos alunos. Mas será que os programas de ciclo são mesmo responsáveis pela baixa qualidade do ensino no Brasil?

Esse mesmo estudo avaliou o impacto da progressão continuada sobre a qualidade da educação. Os resultados mostram que na 4ª série não há efeitos significativos do programa sobre o aprendizado das crianças, mesmo após levarmos em conta fatores como a escolaridade e a renda dos pais. Na 8ª série os alunos das escolas que adotam o regime de ciclos tem notas um pouco menores do que os que estudam sob o regime seriado. A diferença, entretanto, é de apenas 2%. O fato é que os alunos das escolas públicas brasileiras aprendem muito pouco, sejam elas seriadas ou de ciclo.

Pesquisas que acompanham alunos repetentes e aprovados ao longo do tempo mostram como uma diferença pequena de proficiência entre eles no ano inicial amplia-se dramaticamente um ano após a reprovação. A reprovação diminui a autoestima e a motivação do aluno, que perde o contato com seus antigos colegas. Além disso, os critérios de reprovação dos professores são bastante discutíveis. Estudos mostram que esses critérios nem sempre são baseados apenas no desempenho dos alunos, medido segundo critérios objetivos.

Assim, os programas de não repetência nas primeiras séries ajustam o fluxo de alunos de acordo com a idade correta, diminuem a evasão escolar e a desigualdade e tem impactos muito reduzidos sobre o aprendizado dos alunos. Qualquer análise de custo-benefício mostraria que a lei proposta seria altamente benéfica para a sociedade. A culpa pela baixa qualidade da educação pública não é da falta de repetência. Ela é somente o "bode expiatório" de prefeitos e governadores que não conseguem mexer com os interesses corporativos que, esses sim, atrasam a educação brasileira.

* "Avaliando o impacto da progressão continuada sobre as taxas de rendimento e desempenho escolar no Brasil", por Menezes Filho, Vasconcellos, Werlang e Biondi (2009).
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*Naercio Menezes Filho professor titular - cátedra IFB e coordenador do Centro de Políticas Públicas do Insper e professor associado da FEA-USP, escreve mensalmente às sextas-feiras email: naercioamf@insper.edu.br
Fonte: Valor Econômico online, 18/06/2010

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