terça-feira, 29 de junho de 2010

Poema dum Funcionário Cansado

António Ramos Rosa*


A noite trocou-me os sonhos e as mãos

dispersou-me os amigos

tenho o coração confundido e a rua é estreita

estreita em cada passo

as casas engolem-nos

sumimo-nos

estou num quarto só num quarto só

com os sonhos trocados

com toda a vida às avessas a arder num quarto só

Sou um funcionário apagado

um funcionário triste

a minha alma não acompanha a minha mão

Débito e Crédito Débito e Crédito

a minha alma não dança com os números

tento escondê-la envergonhado

o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente

e debitou-me na minha conta de empregado

Sou um funcionário cansado dum dia exemplar

Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?

Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço

Soletro velhas palavras generosas

Flor rapariga amigo menino

irmão beijo namorada

mãe estrela música

São as palavras cruzadas do meu sonho

palavras soterradas na prisão da minha vida

isto todas as noites do mundo numa só noite comprida

num quarto só


_______________________________________
O AUTOR: Já houve quem dissesse que António Ramos Rosa é o grande poeta das coisas primordiais, da luz, da pedra, da água. Português nascido em Faro, Rosa é também ensaísta, tradutor. Publicou dezenas de livros de poesia. Está com 85 anos.
Por Conceição Freitas
Fonte: Correio Braziliense online, 29/06/2010

Nenhum comentário:

Postar um comentário