quarta-feira, 30 de junho de 2010

A senha da memória

Enzima subestimada há 30 anos pela ciência,
a calpain pode ajudar cientistas a desvendar mistérios
sobre doenças como o Alzheimer e
o transtorno bipolar,
indica estudo norte-americano

Houston — A memória, com suas intrigantes e desafiadoras funções, tem desvendado um de seus principais mecanismos, graças ao trabalho de uma equipe de cientistas da Universidade do Sul da Califórnia (USC), nos Estados Unidos. A chave de muitos segredos é uma enzima, chamada calpain. A substância, que permaneceu esquecida por muitos anos, agora revela uma face surpreendente: é uma das principais responsáveis pelo armazenamento de informações em nossa memória.

Por trás dessa enzima, antes subestimada, podem estar escondidas respostas para inúmeras doenças e síndromes como o autismo, o mal de Alzheimer, o transtorno bipolar e até o câncer, que sozinho pode afetar aproximadamente 400 mil brasileiros este ano, conforme estimativa do Instituto Nacional do Câncer (Inca). “Na década de 1990, tínhamos pistas de que havia conexão entre a calpain e a memória, mas não conseguimos provar essa relação, na época. Agora, quase 30 anos depois, demonstramos que a ligação existe e é fortíssima”, afirma um dos responsáveis pelo Programa de Pesquisa de Neurociência da USC, o francês Michel Baudry.

Segundo o cientista, mais do que criar espaços para armazenar memória, a calpain — presente na maioria das células humanas — é responsável também pelos principais movimentos de uma célula, como o de migração, expansão e crescimento. Portanto, também é a substância que detém a previsão de quantos anos podemos viver.

Baudry observa que a enzima em estudo tem como função catalisar proteínas e, consequentemente, modifica suas funções. “O que tentávamos descobrir era como, onde e em quais circunstâncias a calpain era ativada. Escolhemos trabalhar com as células nervosas e adicionamos várias proteínas à enzima”, conta. Diferentemente da frustração de 30 anos atrás, desta vez os cientistas conseguiram provar como a reação ocorre, graças a um novo método, que possibilitou fotografar a ativação da calpain ao mesmo tempo que mostrava a multiplicação de sinapses em um neurônio, as ligações entres as células neurológicas.

Cerca de 10 substâncias foram testadas e a que mais ativou a calpain foi a proteína BDNF (Brain Derived Neurotrophic Factor, ou fator neurotrófico derivado do cérebro) que é considerada um ativador de crescimento bem conhecido pela comunidade científica. “Já se sabe que doenças como Alzheimer, autismo e outras inabilidades mentais têm em comum a falta de BDNF no organismo. Mas não se sabia que sem a calpain, o BDNF se torna subutilizado. Portanto, a calpain é tão importante quanto o BDNF. Uma precisa da outra”, afirma Baudry. Em poucos minutos, depois da calpain ser ativada, milhares de conexões de sinapses foram observadas. “A rapidez do processo foi incrível. Constatamos que a ativação da calpain é responsável por tornar as sinapses maiores e, consequentemente, mais poderosas. Então, sinapses mais largas podem armazenar mais memória e informação”, diz o cientista.

Michel Baudry reforça que as duas substâncias juntas funcionam como se fosse uma chave que se encaixa perfeitamente numa fechadura. “A porta não é aberta sem a senha correta”, compara o cientista. Ele observa que a calpain e a BDNF são produzidas pelo corpo humano e ainda não há medicamentos que disponibilizem sinteticamente as substâncias. “Assim como a BDNF, a calpain também é uma proteína e suas moléculas são de difícil absorção pelo organismo. É possível que no futuro sejam desenvolvidas moléculas que imitem as funções da calpain e da BDNF e que possam ser administradas por via oral. Mas, para isso, são necessários mais estudos”, afirma Baudry.

Com a descoberta, o quebra-cabeça da memória, composto por uma infinidade de dúvidas e um labirinto de caminhos tem agora uma peça fundamental encaixada. “Ao sabermos que a calpain é responsável pela migração e pelo crescimento de células, podemos supor que a célula cancerígena precisa muito dessa enzima para invadir tecidos e se movimentar pelo corpo humano. Isso é uma informação importantíssima para o desenvolvimento de pesquisas que possam culminar na descoberta de cura ou, pelo menos, no controle de doenças”, salienta o cientista.

O próximo passo é justamente mapear, passo a passo, o mecanismo de reação da calpain. “Essa enzima é parte da máquina chamada memória. Ainda faltam peças para que esse quebra-cabeça seja finalizado. No entanto, estamos um pouco mais perto da compreensão de como a nossa memória é formada no cérebro”, diz Baudry.
Homens e mulheres

A guerra dos sexos, quem diria, também pode ser afetada pela pesquisa do Departamento de Neurociências da Universidade do Sul da Califórnia (USC). Durante o experimento, a doutora em neurociências Sohila Zadran, coautora da pesquisa, adicionou diferentes substâncias à calpain, entre elas os hormônios testosterona, estrogênio e progesterona, este último produzido somente pelas mulheres.

Para sua surpresa, as três estimularam consideravelmente o crescimento local do neurônio. Então, a inteligência de homens e mulheres já pode ser medida? Para essa pergunta, Sohila pede calma. “Entre todos esses hormônios, percebemos que a enzima calpain sofre uma reação significativa quando adicionamos o estrogênio. No entanto, a progesterona e a testosterona também ativaram a enzima. Além disso, testosterona e estrogênio são produzidos por ambos os sexos. Se as mulheres são mais inteligentes que os homens ou vice-versa, ainda não sabemos, mas podemos afirmar que esses hormônios são importantes para a memória”, constata.

De origem afegã, Sohila, 23 anos, teve participação fundamental para conseguir provar a ativação da calpain. Foi ela quem conseguiu confirmar a reação química no neurônio. “Foi um avanço expressivo na pesquisa nos últimos três anos. Desde o início, trabalhamos com neurônios de ratos, cujas células se assemelham muito com as humanas”, explica a doutora, acrescentando que os estudos serão direcionados para o entendimento de doenças como o autismo.
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Reportagem: Ingrid Furtado Especial para o Correio Fonte: Correio Braziliense online, 30/06/2010

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