terça-feira, 29 de junho de 2010

Literatura e engajamento político

Moacyr Scliar*

“O caso de Saramago prova que, na cabeça de um escritor,
o ficcionista e o intelectual
habitam compartimentos separados”

José Saramago, falecido no último dia 18, era um grande narrador e uma pessoa afetiva, como pude constatar nas várias vezes em que estivemos juntos, no Brasil (ele gostava muito de Porto Alegre, cidade onde moro) e no exterior. E foi também um conhecido comunista. Como tal, acompanhou as transformações pelas quais o comunismo passou, tanto do ponto de vista ideológico como do ponto de vista cultural. Essa trajetória iniciou-se sob o signo do stalinismo, uma ditadura cruel e opressiva, que interferia em todos os setores da vida das pessoas, inclusive na produção literária. Foi a época do chamado realismo socialista.

Os escritores e os artistas em geral tinham obrigação de, em suas obras, reforçar a imagem do comunismo como um regime ideal, em que todas as pessoas viveriam no melhor dos mundos possíveis, para usar a expressão de Voltaire. A pintura mostrava jovens musculosos, bonitos, altaneiros, de olhar sonhador. A arquitetura evidenciava o poder do Estado: prédios maciços, soturnos, esmagadores. E a literatura exaltava a luta dos revolucionários, atacando os chamados reacionários.

Exemplo é o conto do comunista americano Michael Gold, intitulado “Mais depressa, América, mais depressa”. A ação decorre em um trem particular, fretado por um milionário produtor de Hollywood que ali está, com uma jovem atriz de Hollywood. É o comboio da devassidão, atrizes desavergonhadas, intelectuais vendidos à indústria do cinema. Insistem para que a composição vá mais rápido, sempre mais rápido: “A América é um trem particular que esmaga os escorregadios trilhos da História. Mais depressa, América, mais depressa!” Na escuridão da noite sobrevem um terrível acidente. E aí a gloriosa redenção: “Um camponês vem correndo do escuro. Traz uma foice na mão. A ele se une um operário vestindo macacão e empunhando um martelo. Silenciosos, começam o trabalho de salvação. Desponta a aurora.”

Medíocre como era essa literatura, ela oferecia boas compensações: na antiga URSS, os escritores que seguiam os ditames governamentais tinham a publicação de seus livros assegurada e viviam no maior conforto, em prédios construídos especialmente para eles. Já os contestadores (o caso de Isaac Babel) iam direto para os campos de trabalho.

Saramago, que era de família pobre e foi operário, se tornou comunista muito cedo. Como disse mais tarde em entrevista: “Eu sou o que pode se chamar de um comunista hormonal”. Mas o “hormônio comunista” que circulava em suas veias não era suficiente para neutralizar um temperamento independente e impulsivo. Saramago não se adequava ao chamado coletivismo ideológico, que homogeneizava o pensamento dos intelectuais. Era muito franco, dizia o que lhe vinha à cabeça — não foram poucas as brigas que comprou, mesmo porque não raro se contradizia em suas declarações. Como outros comunistas, defendia o regime cubano; mas em 2003, quando dezenas de dissidentes foram presos e três pessoas foram executadas após julgamento sumário, declarou: “De agora em diante, Cuba segue seu caminho, eu fico aqui. Cuba perdeu minha confiança e fraudou minhas ilusões”.

Significava isso um rompimento? Aparentemente sim, mas pouco tempo depois, em entrevista a um jornal cubano, corrigiu-se: “Não rompi com Cuba. Continuo sendo um amigo de Cuba, mas reservo-me o direito de dizer o que penso”. E criticava o comunismo em geral; em entrevista ao Nouvel Observateur, foi taxativo: “ O comunismo? Ora, isso jamais existiu em nenhum país e em tempo algum. Mesmo na ex-União Soviética, o que havia era um capitalismo de Estado.”

O caso de Saramago prova que, na cabeça de um escritor, o ficcionista e o intelectual habitam compartimentos separados. E nem poderia ser de outra maneira. Ficção nutre-se de fantasias, cuja origem, para o próprio escritor, pode ser obscura e incompreensível. Já o intelectual pensa em termos da realidade concreta que ele quer ver modificada. Mas o intelectual pode se enganar e até formular opiniões desastradas: Saramago comparou a ocupação israelense dos territórios palestinos ao regime hitlerista, o que, em se tratando de um grupo que pagou alto tributo ao nazismo, é uma ofensa pesada. De resto, porém, seus livros são admiráveis. Como acontece em A jangada de pedra, no qual a Península Ibérica desprende-se da Europa e sai flutuando pelo oceano, o Saramago ficcionista libera-se dos estreitos referenciais políticos e sai a flutuar pelo oceano da imaginação.
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*Médico. Escritor. Colunista da ZH
Font`: Correio Braziliense online, 29/06/2010

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