sábado, 19 de junho de 2010

O Jesus de Saramago

José Saramago
-1922-2010-

“JESUS começou por dizer, não se pode ter confiança no que diz o pai da mentira, referia-se, claro está, ao Diabo. Disse André, A verdade e a mentira passam pela mesma boca e não deixam rasto, o Diabo não deixa de ser Diabo por alguma vez ter falado a verdade. Disse Simão, Que tu não eras um homem como nós, sabíamo-lo já, veja-se o peixe que não pescaríamos sem ti, a tempestade que nos ia matando, a água que tornaste em vinho, a adúltera que salvaste da lapidação, agora os demônios expulsos dum possesso. Disse Jesus, Não fui o único a fazer sair demônios de pessoas, Tens razão, disse Tiago, mas foste o primeiro diante de quem eles se humilharam, chamando-te filho de Deus Altíssimo, Serviu-me de muito a humilhação, no fim o humilhado fui eu. O que conta não é isso, eu estava lá e ouvi, interveio João, por que não nos disseste que é filho de Deus, Não sei se sou filho de Deus, Como é possível que o saiba o Diabo e não o saibas tu, Boa pergunta é ela, mas a resposta só eles ta saberão dar, Eles, quem, Deus, de quem o Diabo diz que sou filho, o Diabo, que só de Deus o podia ter sabido. Houve um silêncio, como se todos que ali estavam quisessem dar tempo a que as personagens invocadas se pronunciassem, e, ao cabo, Simão lançou a questão decisiva, Que há entre ti e Deus. Jesus suspirou, Eis a pergunta que eu esperava que me fizésseis desde que aqui cheguei, Nunca imaginaríamos que um filho de Deus tivesse querido fazer-se pescador, Já vos disse que não sei se sou filho de Deus, Que és tu, afinal. Jesus cobriu a cara com as mãos, buscava lembranças do que tinha sido uma ponta por onde começara a confissão que lhe pediam, de súbito viu a sua vida como se ela pertencesse a outro, aí está, se os diabos falaram verdade, então tudo quanto antes lhe sucedeu tem de ter um sentido diferente do que parecia e alguns desses sucessos só à luz da revelação podem agora entendidos. Jesus afastou as mãos da cara, olhou os amigos um por um, com uma expressão de súplica, com se reconhecesse que a confiança que lhes pedia era superior à que um homem pode conceder a outro homem, e no fim de um longo silêncio disse, Eu vi Deus. Nenhum deles pronunciou palavra, apenas aguardaram. Ele prosseguiu, de olhos baixos, Encontrei-o no deserto e ele anunciou-me que quando a hora for chegada me dará glória e poder em troca da minha vida, mas não disse que eu fosse seu filho. Outro silêncio.

 E como se mostrou Deus aos teus olhos, perguntou Tiago, Como uma nuvem, uma coluna de fumo, Não de fogo, Não, não de fogo, de fumo. E não te disse mais nada, Que voltaria quando chegasse o momento, O momento de quê, Não sei, talvez de vir buscar a minha vida, E essa glória, e esse poder, quanto tos dará, Não sei. Novo silêncio, na casa onde estavam abafava-se de calor, mas todos tremiam. Depois Simão perguntou pausadamente, Serás tu o Messias, a quem deveremos chamar filho de Deus porque virás para resgatar o povo de Deu da servidão em que se encontra, Eu, o Messias, Não seria maior motivo de assombro do que seres filho directo do Senhor, sorriu-se André nervosamente. Disse Tiago, Messias ou filho de Deus, o que não compreendo é como o soube o Diabo, se o Senhor nem a ti to declarou. Disse João, pensativo, Que coisas que nós não sabemos haverá entre o Diabo e Deus. Olharam-se receosos, porque tinham medo de sabê-lo, e Simão perguntou a Jesus, que vais fazer, e Jesus respondeu, O que só posso, esperar a hora.

(Do livro: O Evangelho Segundo Jesus Cristo, SP: Companhia de Letras, 1991, pp. 357-359)

Nenhum comentário:

Postar um comentário