quarta-feira, 23 de junho de 2010

A cultura do tédio veloz

Paulo Ghiraldell Jr.
“Vamos direto ao ponto” – quem não pronunciou uma expressão como esta? Há problema nisso? Depende. A frase pode estar dirigida à cobrança de objetividade na ação. Todavia, não raro, a frase esconde um segredo (de Polichinelo) de nossa época: a cultura da não-reflexão. No limite, essa cultura fomenta o ódio aos que se dedicam a um trabalho específico, intelectual e político, a saber, o da filosofia e o da democracia liberal.

A filosofia faz a tomada das perspectivas em jogo em uma situação problemática e, concomitantemente, promove uma ponderação relativamente acurada sobre cada narrativa que essas perspectivas envolvem. A democracia liberal põe na mesa, ao menos no ponto de partida, a legitimidade política de todas as perspectivas que se apresentam e a garantia de que elas serão objetos de debate livre, cada uma ganhando um bom representante em tal debate. “Vamos direto ao ponto”, não raro, é fórmula pela qual esse debate é atropelado ou dispensado e o modo como o exame reflexivo é colocado como desnecessário. Não é propriamente “a pressa” que é o que se estabelece; é a prática de um longo aprendizado social (e escolar) que se instaurou no contexto da revolução industrial e da urbanização, e que é um tipo de reflexo do tédio que essa forma de sociedade fomenta dentro de sua aparente hiperebulição.

As sociedades modernas se apresentam em nosso imaginário por meio das cenas das grandes metrópoles onde indústria, comércio e setor bancário se acotovelam para se expressar em shopping centers avassaladores. Tudo caminha em velocidade e, no entanto, tudo corre sempre igual para uma boa parte das pessoas, de modo que o melhor represente disso é o globo da morte: o motociclista gira em alta velocidade, mas confinado ao mesmo minúsculo espaço e dentro das únicas rotas possíveis. Há a aparente excitação. Na verdade, dentro dessa agitação, a rotina do tédio se instaura. É o tédio moderno, o tédio em alta velocidade. Nessas sociedades os que são capazes de dizer, com aparente segurança, “vamos direto ao ponto”, são os heróis de todas as horas.

É claro que a morosidade e a falta de capacidade para o simples, quando o simples é possível, não é mérito para ninguém. Mas, o problema é que justamente nas sociedades modernas, a reclamação contra a morosidade se faz indiscriminadamente. Já que a burocracia é morosa, e ela, como Weber deixou bem notado, impera na modernidade, então começamos a jogar a nossa reclamação contra esse tipo de atitude para todo e qualquer lado. Atingimos, assim, setores que iriam melhor se não decepassem elementos trazidos pelas práticas da filosofia e da democracia. O “vamos direto ao ponto” torna-se não uma frase boa para atravessar a burocracia, pois nada a atravessa, e cai no lado mais fraco da modernidade, sua capacidade de reflexão e sua vontade de deliberação. A filosofia demanda o tempo da reflexão e a democracia o tempo da discussão. Juntas, filosofia e democracia podem fazer bons serviços, mas não milagre. Mas, uma sociedade desencantada – ainda para lembrar Weber – como a nossa sociedade moderna, parece se ressentir de não poder mais cultivar milagres. Então, o milagre aparece na ponta da língua daquele que saca o seu “vamos direto ao ponto”. Ele promete, enfim, uma decisão.

Quem se lança à frente prometendo o fim do que classifica como pantomima desnecessária de intelectuais e liberais ganha as palmas dos cansados do tédio em alta velocidade. Abortam pensamentos, forçam decisões, empurram-nos para a burrice e para o autoritarismo.

Essa cultura do “vamos direto ao ponto” atinge todas as nossas instituições. Quanto mais nos burocratizamos, mas tendemos a aplaudir os que tomam nossa voz de vingança e, com a energia delas, pronunciam o feroz e ilusionista “vamos direto ao ponto”. Ilusionista? Em certo sentido, sim. Pois, quando se diz “vamos direto ao ponto”, já não se pergunta mais qual é o ponto, indica-se o ponto único, sacado do bolso do colete como o mágico tira a pomba.

Em uma sociedade moderna, ressentida porque aboliu do horizonte a legitimidade dos mágicos e sacerdotes místicos, aquele que aparece tirando coelhos de cartolas e pombas de lenços ganha uma força enorme se abre seu show dizendo “vamos direto ao ponto”. Ninguém mais quer discutir qual ponto, o que é o tal ponto e como que se vai direto ou indireto para ele. Todos estão entediados na velocidade e parecem poder descansar, como na frente da TV em um fim de semana, segundo o alucinógeno “vamos direto ao ponto”.

“Vamos direto ao ponto”. Quando pronunciarem isso diante de você, cuidado, pois não se irá direto ao seu ponto, mas ao ponto alheio. No ponto alheio, você pega o bonde errado.

Na prática escolar e educacional em geral o “vamos direto ao ponto” tem rebentos bem específicos. Os professores mesmos incentivam a vida desses rebentos. Alguns exemplos refrescam bem nossa memória sobre esse tipo de prática no ambiente de ensino.

Primeiro exemplo. Os professores dão notas por pedaços executadas de tarefas que, feitas por partes, perdem o sentido e a razão de existência. Como é possível se dar nota por alguém ter aprendido 70% dos tempos dos verbos? Não se pode pular tempo verbal. No entanto, há vários escolas tidas como boas em que a avaliação é feita, indiscriminadamente, por porcentagem do que se executou em uma tarefa.

Segundo exemplo. A prática de professores de pedirem a resenha que, enfim, nem síntese é, mas se transforma em resumo ou “fichamento”. A idéia vem já da escola fundamental através da esdrúxula ordem: “leia e tire as idéias principais”. Assim, ensina-se que todo intelectual, que todo autor, escreve mais que o necessário e que o serviço de aprendizado e pegar algumas idéias, pois o conteúdo do escrito, o estilo, o uso da linguagem e a argumentação são “blá-blá-bla”.

Terceiro exemplo. Não são poucas as universidades em que as disciplinas pedagógicas ou de humanidades, quando oferecidas para engenheiros e outros de áreas das ciências naturais são tomadas como “perfumaria”. Pode-se falar de tudo em educação, pois ali é o campo da completa falta de objetividade – essa avaliação não é desmentida veementemente pelos professores das próprias humanidades.

Quarto exemplo. Os órgãos de fomento à pesquisa tratam os filósofos e outros pesquisadores em humanidades como que tendo de se enquadrar em fichas, documentos e prazos dado por padrões de áreas em que o tempo de maturação das idéias, a vivência, é secundário. Criam-se também os modelos de currículos (como plataformas eletrônicas) unificados – corta-se a criatividade do professor em se apresentar, moldando-o a um folha padronizada em que todo e qualquer scholar é visto segundo uma lógica da má equalização.

É claro que em cada um desses exemplos, a reflexão amadurecida e a discussão democrática, por mais que sejam enaltecidas em documentos e falas, não ganham nenhuma preponderância sobre a flecha mortal do “vamos direto ao ponto”.

O resultado dessa cultura, principalmente em países como o nosso, em que as tradições de filosofia e de democracia não são as mesmas da Europa e dos Estados Unidos, ficando aquém do desejado, é algo perverso. Já podemos sentir isso em nossos scholars e em nossos políticos. Os primeiros têm se transformado no que Weber chamou de “especialistas sem inteligência e hedonistas sem coração”, quando quis qualificar o homem moderno em geral. Os segundos ficam semelhantes a meros advogados de porta de cadeia, sempre prontos a rascunharem petições aqui e ali, embora não consigam saber qual o objetivo maior em que estão envolvidos no trabalho do executivo ou do legislativo. Não conseguem promover a cidadania, mas a confundem com a capacidade de ludibriar e modificar rapidamente as leis que impedem sua ação particular, privada, desconhecendo metas históricas do país.

Daqui alguns dias nós encontraremos até mesmo filósofos dizendo “vamos direto ao ponto”. Pois, enfim, políticos já estão dizendo isso. Pois há os que nem mais querem que as eleições se decidam em segundo turno, eles cassam companheiros concorrentes, pois tudo tem de ser feito rapidamente, antes da hora que o próprio jogo previa. Na educação escolar e na educação política, não se combate a morosidade por meio da eficiência e, sim, se elimina a reflexão e o expediente político democrático liberal como se isto fosse o que, enfim, cria a morosidade e nos joga no tédio veloz. Parar isso nos parece, às vezes, impossível. Mas não é! Desde que tenhamos clareza que em certos momentos nós embarcamos no “vamos direto ao ponto”, ferindo nossos próprios interesses maiores, podemos agir requisitando de volta a prática liberal e reflexiva.
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*Atualmente trabalho como filósofo, escritor, editor e parecerista em editoras nacionais e internacionais e consultor de entidades públicas e privadas, inclusive fui consultor da Organização dos Estados Ibero Americanos para a crítica de determinados planos do Ministério da Educação (MEC). Às vezes, também me dedico à atividade de tradutor. Fui o criador do GT-Pragmatismo da ANPOF e fui coordenador do GT Filosofia da Educação da ANPEd. Participo da coordenação do primeiro, agora encabeçado pela minha amiga, a filósofa Susana de Castro. No cotidiano, dirijo o Centro de Estudos em Filosofia Americana , uma entidade autônoma de pesquisa. Desde o início de 2010 voltei ao ensino universitário, como professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (URFFJ).

Fonte: Blog http://ghiraldelli.pro.br/2010/06/23/a-cultura-do-tedio-veloz/

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