Sérgio da Costa Franco*
Medida adotada pela direção do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (foto), de transformar a capela católica ali existente num espaço neutro para a prática de qualquer culto, suscitou reação de grupos ligados à religião católica, inclusive do arcebispo dom Dadeus, que parece ser amigo de polêmicas.
O estranhável é que até agora, neste avançado ano de 2010, ainda houvesse num hospital público um templo exclusivo da igreja romana. Em tempos de ecumenismo, quando o próprio Papa procura aplainar conflitos com os evangélicos e com os ortodoxos, com os israelitas e com os muçulmanos, é surpreendente que fiéis e clérigos de Porto Alegre pretendam manter privilégios de religião oficial.
Foi a República que pôs um fim à religião de Estado, inserindo em sua Constituição a norma de que “nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial nem terá relações de dependência ou aliança com o governo da União, ou dos Estados”. Acabou-se então o regalismo, que autorizava o imperador a interferir na hierarquia católica, que permitia aos poderes provinciais criar paróquias e extingui-las, e que transformava os párocos em funcionários públicos. Apesar desses estreitos vínculos, ou em função deles, a Justiça imperial terminou processando bispos e levando-os até ao cárcere. De modo que a separação entre a Igreja e o Estado foi saudada pelos católicos mais lúcidos como um passo à frente no sentido das liberdades da Igreja. Não por acaso, a separação já fora defendida até por Joaquim Nabuco ao tempo da monarquia.
Todas as religiões se beneficiaram da reforma republicana, exceto talvez as de origem africana, que continuaram sendo combatidas por quem as rotulava de “fetichismo” e as discriminava como inferiores, como se o pensamento mágico pudesse ter gradações e hierarquias.
Sociedade multicultural, com a presença de crentes de quase todas as religiões ocidentais e orientais, a sociedade brasileira não poderia consentir numa religião oficial e privilegiada. Tanto mais que a antiga predominância absoluta da igreja romana vai desaparecendo, com a progressiva ascensão dos mais variados credos, evangélicos, pentecostais, afro-brasileiros, budistas e até islâmicos. Assim, sobravam razões ao legislador quando estabeleceu no artigo 72, parágrafo 7º, da Constituição de 1988, que “nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial nem terá relações de dependência ou aliança com o governo da União ou dos Estados”.
A capela do Hospital de Clínicas era estritamente ligada ao catolicismo, com imagens incompatíveis com outros cultos, mesmo cristãos. Isso caracterizava uma situação de privilégio oficial, dado que seria impossível consagrar, naquele hospital público, espaços próprios para cada uma das confissões existentes na comunidade. Não há reparos a fazer à atitude da direção do Hospital, que obedeceu estritamente à regra constitucional. Se, no passado, houve concessões indevidas e inobservância de regras legais, isso não gera direitos nem cria prerrogativas especiais em favor de ninguém.
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*Historiador
Fonte: ZH online, 26/06/2010
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