Michael Allen*
No papel, Angola é um símbolo do esforço global para manter "os diamantes de sangue" fora das joalherias do mundo.
A pressão internacional ajudou a pôr um fim numa guerra civil selvagem há uma década ao estrangular a capacidade dos rebeldes de trocar dimantes por armas. Angola é agora um dos principais membros do chamado Processo de Kimberley, um esforço de todo o setor para evitar o comércio de diamantes brutos por grupos insurgentes. Hoje, Angola é o quinto maior produtor de diamantes em valor, e suas pedras são cobiçadas por seu tamanho e pureza.
Mas uma visita ao centro produtor de diamantes de Angola revela que muito sangue ainda espirra dessas pedras preciosas. Aqui, na selva do nordeste de Angola, prevalece uma economia violenta, na qual milhares de garimpeiros ganham a vida procurando diamantes com pás e peneiras. Como eles não têm permissão do governo, os garimpeiros e suas famílias dizem que rotineiramente apanham e são extorquidos por soldados e guardas de segurança particulares - e, em casos extremos, são mortos.
Esse tipo de violência, que chegou às manchetes do vizinho Zimbábue, está ameaçando rachar o Processo de Kimberley. Os varejistas de diamantes não podem se dar ao luxo de enfrentar mais publicidade negativa sobre as gemas. Mas muitas das nações produtoras de diamantes na África estão receosas quanto a qualquer esforço para reforçar o policiamento dos direitos humanos.
As histórias de confronto são abundantes nos garimpos de Angola. Em uma entrevista ao Wall Street Journal, Linda Moisés da Rosa, de 55 anos, denunciou o assassinato de seus dois filhos, ambos garimpeiros de diamantes. Em setembro, disse ela, os soldados angolanos desceram em uma mina próxima daqui para afastar os trabalhadores que estavam garimpando. Quando alguns se recusaram a sair, disse ela, os soldados causaram o desmoronamento da mina, enterrando vivos cerca de 45 homens, incluindo um filho dela, Pereira Eduardo Antonio, de 21 anos. "Esses jovens eram teimosos", disse, complementando que os soldados disseram que as mortes "deveriam servir de lição a qualquer um que queira novamente vir aqui para garimpar".
Em fevereiro, disse, o seu filho mais velho, Tito Eduardo, de 33 anos, o único ganha-pão da família, entrou numa briga com um dos seguranças particulares em uma outra mina. Ela disse que os guardas tinham concordado em permitir que os garimpeiros peneirassem cascalhos para encontrar diamantes por cerca de US$ 30 por dia. Eles acusaram o filho dela de não pagar o suborno e, quando ele se defendeu da acusação, "eles o mataram com um facão de mato".
Autoridades militares não responderam a pedidos de comentários. O secretário de Estado para os Direitos Humanos de Angola, António Bento Bembe, culpa a longa guerra civil do país por ter criado um ambiente de abusos. "Eu sei que muitos desses casos acontecem e eu sei de muitos outros casos sobre os quais vocês não ouviram", disse ao Wall Street Journal em Luanda, a capital de Angola. "É urgente a necessidade de cultivar uma cultura de direitos humanos."
A situação mergulhou o Processo de Kimberley na pior crise de sua breve história. Criado numa época de grande derramamento de sangue no continente africano, o Processo de Kimberley, que reúne 75 países, foi inicialmente elogiado por seu compromisso com os direitos humanos. Movimentos rebeldes tinham tomado o controle de regiões produtoras de diamantes em Angola, Serra Leoa e na República Democrática do Congo e estavam usando as pedras para financiar exércitos guerilheiros. Diante de um pesadelo de relações públicas, empresas mundiais do setor de diamantes concordaram em comprar somente pedras brutas que fossem certificadas por governos internacionalmente reconhecidos. O Processo de Kimberley informa que mais de 99% dos diamantes brutos comercializados no mundo hoje são "livres de conflitos".
Mas os críticos dizem que existe uma grande brecha nessa definição: ela não leva em conta os abusos aos direitos humanos nos territórios de diamantes que são controlados por governos. "O Processo de Kimberley cortou a linha de financiamento dos rebeldes, mas, ao mesmo tempo, legitimou governos corruptos que abusam do seu próprio povo", diz Rafael Marques, ativista de direitos humanos que trabalhou extensivamente no nordeste de Angola.
Muito da controvérsia recente está focada no Zimbábue, onde a organização de direitos humanos Human Rights Watch informou, no ano passado, que soldados do governo massacraram mais de 200 pessoas numa briga para controlar as áreas de diamantes no leste do país, violentaram mulheres da região e usaram quadrilhas para obrigar os trabalhadores a garimpar. O Processo de Kimberley suspendeu as exportações da região, alegando que o conflito estava permitindo que pedras não documentadas fossem contrabandeadas no mercado mundial. No mês passado, um monitor instalado pelo Processo de Kimberley recomendou que a proibição fosse suspensa, levantando um debate feroz. Um comitê do Processo de Kimberley está avaliando a recomendação e discutindo o assunto esta semana em Telavive.
A Global Witness, organização de direitos humanos que ajudou a criar o Processo de Kimberley, pediu que o Zimbábue fosse suspenso do grupo. "Graças à impunidade e à violência no Zimbábue, os diamantes de sangue estão de volta ao mercado internacional", diz Elly Harrowell, um ativista da Global Witness.
Os joalheiros estão começando a temer que a publicidade negativa possa assustar os consumidores. Matthew Runci, presidente da Jewelers of America, uma associação que representa redes de joalherias dos Estados Unidos como a Tiffany & Co. e a Zale Corp., diz que o Processo de Kimberley deveria encontrar uma forma de incorporar o monitoramento de direitos humanos à supervisão dos países membros ou convidar uma organização de fora para fazer isso. "É essencial que a confiança do público nos diamantes seja mantida em um nível alto", diz. Uma vez que o diamante é lapidado e polido, é virtualmente impossível para o consumidor dizer qual foi o país de origem.
Cecilia Gardner, ex-promotora federal de Nova York e titular do Conselho Mundial do Diamante, diz que o Processo de Kimberley é uma organização voluntária e que não está equipada para garantir o cumprimento das leis de direitos humanos. "Nós não temos um exército, nós não temos uma força policial", diz ela.
Em Angola, que tem uma importância muito maior que Zimbábue no mercado de joias, o Processo de Kimberley parece ter pouco apetite pelas questões de direitos humanos. Em agosto passado, quando o grupo de representantes que faz revisões do processo chegou ao país para avaliar o cumprimento dos procedimentos, forças angolanas estavam em meio a uma operação para expulsar cerca de 30.000 garimpeiros congoleses ilegais em território angolano aqui perto. De acordo com um relatório de Departamento de Estado americano, citando a mídia local e organizações não governamentais, militares e policiais "espancaram e violentaram detentos" e os forçaram a marchar até a fronteira sem água ou comida. O governo local nega que tenha cometido abusos e afirma que o exército estava meramente garantindo a segurança das fronteiras do país.
Um relatório confidencial do Processo de Kimberley sobre a visita de vistoria não faz menção ao suposto abuso dos direitos humanos, embora critique Angola por não ter conseguido apresentar um plano para documentar melhor a produção dos trabalhadores das minas. O grupo passou apenas dois dias em Lunda Norte, uma área próxima da fronteira com o Congo que tem alguns pontos críticos de conflitos entre garimpeiros e forças de segurança. De acordo com um esboço do relatório interno, a delegação pretendia visitar a área de uma grande operação ilegal de mineração, mas foi desviada por "uma decisão de última hora de participar de uma cerimônia de formatura de novos oficiais da patrulha de segurança da fronteira". Quando o grupo estava se preparando para partir, o presidente do conselho do Processo de Kimberley naquele momento, Bernhard Esau, político da Namíbia, declarou a visita um sucesso e evitou perguntas sobre os supostos abusos aos garimpeiros. "O Processo de Kimberley não é uma organização de direitos humanos", disse ele aos repórteres.
As raízes dos problemas atuais dos diamantes de sangue em Angola têm muito a ver com a geologia. Diferentemente de Botsuana e da África do Sul, onde as empresas multinacionais usam maquinário pesado para extrair diamantes de minas profundas, grande parte das reservas é aluvial, o que significa que as águas lavaram os diamantes para fora da terra e os espalharam pelo campo. Eles estão disponíveis para qualquer um que tenha uma pá e uma peneira, e dificilmente conseguem ser protegidos por empresas mineradoras. Mais de 1 milhão de pessoas no mundo todo ganham a vida com a mineração artesanal em campos aluviais, sendo dezenas de milhares só em Angola.
Os garimpeiros de Angola tiveram um papel fundamental na guerra civil do país, que durou 27 anos e causou a morte de pelo menos meio milhão de pessoas. As tropas da União Nacional para a Independência Total de Angola, a Unita, que eram apoiadas pelos EUA e lutaram para depor o governo socialista, ajudado pela antiga União Soviética, controlavam a maior parte do território de diamantes do país. Para financiar o esforço de guerra, eles alistaram trabalhadores da região para o garimpo, assim como os do vizinho Zaire, agora conhecido como República Democrática do Congo.
Embora as forças da Unita tenham cometido várias atrocidades, algumas pessoas em Cafunfo dizem que, de forma geral, elas tratavam bem os garimpeiros. Elas permitiam que os escavadores mantivessem um porcentual dos diamantes que encontrassem e que estabelecessem uma política de imigração para trazer trabalhadores congoleses com permissão de 30 dias, diz Enoque Jeremias, investigador de recursos humanos local. "Era um sistema justo", diz ele.
O fim da guerra estimulou o aumento da produção de diamantes, na medida em que grandes empresas de mineração afastaram reivindicações antigas e lançaram novas operações. Entre os novos operadores estão a brasileira Odebrecht SA, a estatal russa Alrosa e uma empresa controlada pelo magnata israelense de diamantes Lev Leviev. Todas operam por meio de joint ventures com a companhia de diamantes do governo, a Endiama.
Mas os garimpeiros não estavam preparados para colocar suas pás de lado. Existe pouca agricultura aqui e quase não há empregos fora do setor de mineração. Além disso, várias áreas rurais do país ainda não foram exploradas, muito menos mineradas.
_______________________________________*The Wall Street Journal, de Cafunfo, Angola
Fonte: Valor Econômico online, 23/06/2010
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