sexta-feira, 25 de junho de 2010

Um santo sem Deus

Jimmy Sudário Cabral


José Saramago morreu. Difícil mensurar a angústia em que me encontrei diante da notícia da morte do apostolo do Evangelho Segundo Jesus Cristo. Difícil foi também evitar as lágrimas pela perda desse santo iconoclasta. Talvez as mesmas derramadas há muitos anos, ao curso da leitura do seu belíssimo evangelho. Para mim, uma experiência religiosa. Digo sem pestanejar: Saramago foi um Santo. Sua trajetoria responde a pergunta que Camus fez a si mesmo a vida inteira: é possivel ser um santo sem Deus? Saramago o foi. Sua vida foi a consistente expressão de um apostolado que soube erguer um altar onde as angústias dos homens modernos puderam ser colocadas sem titubeios e saídas fáceis. Um santo angustiado, como foram todos aqueles dignos de assim serem nomeados. Um fazedor de altares que fez do seu protesto uma oração que ignorou os abismos que atravessam a existência de um mundo para sempre irreconciliado. Um humanista intransigente, diante do qual devemos tirar nossas sandalias balbuciando reverências. Soube como poucos atravessar a nossa babel despedaçada com a coerência de um apostolo que trouxe em seu alforge a inteligência dos sábios e em seu coração a sensibilidade dos santos. Levou consigo a responsabilidade pela dor do mundo. Soube traduzir como poucos, essa dor do mundo.

Como não reconhecer essa santo brigão e altivo, que fez do seu ateísmo um lugar teológico onde o combate com o Deus biblico ofereceu um cenario que trouxe dignidade a tradição judaico-cristã, lastimosamente vítima de uma reflexão « teológica » que ao invés de mantê-la viva, enterrou-a ainda mais na insistência e insignificancia das ortodoxias. Expressão de um século que se traduziu religiosamente pela banalidade dos fundamentalismos, poucas foram as vezes em que a reflexão teológica do judaismo cristão fora privilegiada com um interlocutor de tamanha grandeza. Por isso mesmo, o desprezo que exala pelos poros de algumas almas teístas diante da catástrofe que foi a morte de José Saramago, deve nos fazer pensar.

Saramago trouxe dignidade para a exigente tarefa de orientar-se dentro do mundo. Orientou-se, como um santo e como um artista. Um santo sem Deus, que rasgou de suas entranhas o fundamento místico que fez dele um cidadão que esteve entre as mais significativas expressões de engajamento político do nosso tempo. Um santo estupefado pelo mal hálito de um mundo vazio e violento, religiosamente afetado pela contradição, incansavelmente protestador da desigualdade, irremediavelmente proclamador de sua fé humanista: « dentro de nos há uma coisa que não tem nome, e essa coisa é o que somos. », escrevia Saramago em seu monumental Ensaio sobre a cegueira. Um artista que procurou esgotar todas as possibilidades de sua arte. Um artista que experimentou respirar as angústias de um mundo incompreensível. Um trágico que soube sublinhar com sua pena os contornos do absurdo. Um poeta que em sua maturidade reconheceu-se (in)capaz de ser artesão do mundo. Um homem, um santo, um artista, que talvez tenha acenado pistas de como enfrentar sacro-esteticamente a solidão da vida e dos elementos.

O mundo ficou mais pobre sem Saramago.
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* Teólogo. Escritor.
Fonte: http://amaivos.uol.com.br

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