Paulo Ghiraldelli*
Uma vez vi um jovem mestrando falar sobre o “professor reflexivo”. Perguntei como ele se via; seria ele um professor ou um “professor reflexivo”? Ele respondeu que ele fazia um esforço para ser um “professor reflexivo”. Pedi então que ele me dissesse sobre o que ele refletia. Respondeu-me prontamente que ele refletia sobre sua “prática diária como professor”. Solicitei que me contasse sobre a reflexão, o que ele fazia, concretamente, nessa reflexão. Mas ele voltou a repetir o jargão, que refletia sobre “tudo” da sua prática. Pedi exemplos. Ele tentou esboçar um, mas novamente preferiu falar o que havia lido, dizendo que refletia sobre o seu cotidiano como professor que estava “junto dos alunos”. Dei de ombros e fui embora – daquele mato não sairia coelho algum.
Outras experiências com o tal “professor reflexivo” em outros lugares e … nada! Sem coelho!
Duvido que o “professor reflexivo” gerado pela literatura que fez apologia desse tipo de professor consiga fazer mais do que o mestrando citado. E isso por uma razão simples: a literatura que colocou na praça o “professor reflexivo” é a mesma que defendeu a idéia de que o professor não é um transmissor de conhecimento e, sim, um “organizador de saberes e de práticas para que a aprendizagem possa ocorrer”. Oras, do que se está falando?
Um professor que não transmite conhecimentos e se dedica à organização de situações para que a aprendizagem aconteça é um professor que não tem conhecimentos? Ou tem, mas os nega? Ou tem, e os renega? Em qualquer caso, duvido que alguém seja reflexivo se não transmite conhecimentos. Quem não transmite conhecimentos diz o que ao estudante? Faz o que em sala de aula? Diz para ao aluno ir a uma biblioteca ou à Internet? Mas isso qualquer professor tem de falar. Na verdade, a questão é o seguinte: como pode o tal professor organizador organizar o saber para o aluno sem transmitir os conhecimentos?
A questão que temos de resolver nesse caso são as diferenças entre o que é a seqüência pedagógica e o que é a seqüência própria do item cultural a ser aprendido pelo estudante.
Posso organizar uma seqüência pedagógica para que um estudante compreenda o que é uma equação do segundo grau e de como Baskhara chegou à fórmula-macete de sua resolução. Posso organizar uma seqüência pedagógica para que um estudante consiga executar uma “bandeja” no basquetebol. Posso organizar uma seqüência pedagógica para que um estudante possa aprender as idas e vindas do complicado período da Revolução Francesa. Posso organizar uma seqüência pedagógica para que o estudante entenda o exercício do elenkhós socrático. Posso organizar uma seqüência pedagógica para que o estudante compreenda a aplicação da terceira lei de Newton. Essas seqüências, como disse, são pedagógico-didáticas, não são predominantemente lógicas ou históricas ou pragmáticas. Elas são montadas para que o aluno aprenda. Depois disso, o aluno pode aprofundar seus conhecimentos e, então, reconstruir tais seqüências não mais pela lógica pedagógica, mas ou pela história do assunto ou pela sua lógica interna ou pela sua pragmática – tudo o que chamamos de lógica própria do conteúdo. Mas, em alguns casos a lógica interna ou a história ou a pragmática já é a melhor seqüência pedagógica. Dentre os exemplos que citei, o caso do método socrático corresponde a esta última situação. O melhor modo de ensinar o método socrático é o exercício real do método socrático. Mas, no caso da bandeja do basquetebol, a pior coisa seria tentar ensinar um aluno a executá-la a partir de sua melhor execução feita por um atleta perfeito. Essas distinções só são feitas porque o professor não só domina o saber, mas, efetivamente, porque ele o transmite.
"Organizar o conhecimento não é ligar um data show e,
em seguida, levar o aluno a responder perguntas.
Nem mesmo é dar textos
(não raro em cópia xerox) de outro autor
para o aluno ler e “discutir”,
sendo essa discussão não discute nada,
apenas faz a estéril atividade de
“tirar os pontos principais do texto”.
A situação mais fácil de exemplificar isso diz respeito ao livro. Quando eu, como professor, produzo um livro, eu organizei mentalmente o conhecimento e o transmiti em uma narrativa ao deixar o livro pronto. Fiz opções claras ao criar a narrativa do livro. Essas opções determinaram a organização que dei ao conhecimento e essa organização só se faz se o livro fica pronto. Ele pronto, o conhecimento já se transmitiu – está no papel. Do papel para o aluno ou da minha boca para o aluno, é menos que meio passo. À medida que o aluno lê o meu livro e, portanto, recebe a transmissão do conhecimento, ou seja, o conteúdo do livro, ele recebeu o conhecimento organizado. Organizar o conhecimento é isso. Não é algo que se possa fazer independentemente da transmissão.
Organizar o conhecimento não é ligar um data show e, em seguida, levar o aluno a responder perguntas. Nem mesmo é dar textos (não raro em cópia xerox) de outro autor para o aluno ler e “discutir”, sendo essa discussão não discute nada, apenas faz a estéril atividade de “tirar os pontos principais do texto”. Nesses dois casos, o que se faz é parecido com a atividade do treinador esportivo. Elaborar algo como um circuito de treinamento para que o aluno o percorra não é organizar o conhecimento. Isso é outra coisa. Ou melhor, isso é fazer o que nome já diz: criar um circuito de treinamento que, uma vez percorrido pelo aluno, o deixa bem treinado. Mas treino não é educação, é parte dela. E há treinos que nem isso é.
O professor que não elabora a sua narrativa e a transmite, não exerceu nenhuma atividade com sua marca própria. Ora, se alguém quer ser um treinador assim, eu admito, mas que alguém queira ser um professor assim, eu creio que vamos de mal a pior. Pois um professor assim não erra, uma vez que não expõe uma narrativa sua. Não erra e também não acerta. Ou seja, faz pouco ou nada pelo aluno.
O “professor reflexivo”, hoje, talvez já não esteja mais na moda. Caso não esteja, melhor, pois aí teremos chances de ter algum professor realmente fazendo uma reflexão. Criar uma reflexão pedagógica sem que a base desta seja o fato pedagógico de que professor é um transmissor de conhecimento, ainda que não o único, não é uma ilusão, é realmente uma coisa maluca, sem sentido.
Isso que disse acima é o básico para a formação de professores, de qualquer nível. O resto é conversa para boi dormir. E o boi realmente dorme, não só no Terceiro Mundo, mas também em alguns lugares que querem se passar por Primeiro Mundo, mas que estão aquém do Terceiro Mundo em pedagogia.
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*©2010 Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor e professor da UFRRJ.
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