quarta-feira, 23 de junho de 2010

Saramago e o Vaticano

Mauro Santayana*

Há dias (Coisas da Política, 4/6, A compaixão e a esperança) comentávamos, neste mesmo espaço, texto do Dalai Lama sobre a visão de Deus como a essência da compaixão. Os humanistas, agnósticos ou ateus, tampouco desdenham a compaixão, que é a forma mais profunda, mais radical, da solidariedade entre os seres humanos. Compadecer-se é padecer em comum, é compartir do mesmo pão do sofrimento, chorar as mesmas lágrimas e, em casos extremos, comungar da mesma agonia, como ocorreu a Cristo e seus dois companheiros do Calvário.

O escritor José Saramago tem admiradores e críticos. Muitos o identificam com predecessores que marcaram a literatura, com seu estilo próprio, sua “oralidade”, que despreza alguns cânones da língua e subverte a pontuação. Como a estética (aesthesis) é sensação, cada um de seus leitores vê em Saramago aquilo que quer ver, ou pode ver. O escritor só se completa com o leitor e, também nesse ato, há uma forma de “compaixão”. Quem lê pode sentir ou não o autor, compartir ou não de seu juízo, de sua comiseração ou de seu desdém para com os personagens. Há quem chore diante de uma passagem de Bach, e quem sofra com um poema de John Donne. E há quem deteste uma página de Saramago.

Os críticos, como o novelista Aguinaldo Silva fez, podem desdenhar e desprezar o grande escritor. Uns – e não creio ser o caso do autor de Soap operas – podem sentir-se injustamente desprezados pela glória, embora possam desfrutar de alguma fama. Afinal, em poucos anos, graças a uma dedicação total à literatura, Saramago impôs seu nome em um universo literário de excepcionais criadores do século passado. Não é fácil destacar-se em uma constelação de escritores como Fernando Pessoa e Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro e Miguel Torga, Agustina Bessa Luis, Fernando Namora, Sophia de Mello Breyner e José Cardoso Pires. Não se pode pedir aos invejosos, nem aos críticos profissionais, que tenham compaixão para com os personagens de Saramago, homens do povo. Mas o L’Osservatore Romano, em artigo assinado por um Cláudio Toscani, foi ímpio, injusto, odioso.

Uma velha questão, que sempre se reacende em episódios como o atual, é a da oposição frequente entre o católico e o cristão. Podemos lembrar o que ocorreu entre François Mauriac e Jean Cocteau, em 1951. Amigos de juventude e, conforme recente biografia de Jean-Luc Barre, membros de um mesmo grupo de homossexuais, eles romperam a amizade, quando Cocteau estreou sua peça Bachus. Mauriac lhe escreveu carta violenta, acusando-o de blasfêmia. Cocteau – que tinha muito mais talento do que o autor de Thérèse desqueyroux – respondeu-lhe em carta aberta, sob o título de Je t’accuse. Nela, o grande poeta, dramaturgo e cineasta resume todo o seu pensamento, com a frase forte: “Je t’accuse, si tu es un bon catholique, d’être un mauvais chrétien”.

A compaixão – a comunhão solidária do ficcionista com seus personagens, todos eles “levantados do chão” da Humanidade – é o traço mais poderoso da obra de Saramago. Ele pode ter negado a natureza divina de Cristo, mas não o seu sofrimento como homem, a sua solidariedade como homem, a sua grandeza como homem.

O Vaticano, tão condolente com seus próprios pecadores, tão açodado em canonizar os balagueres da Igreja, enquanto desdenha o martírio de dom Romero, poderia ter evitado o gravíssimo pecado da impiedade contra José Saramago.

O texto de Cláudio Toscani não é de um cristão.
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*Jornalista.
Fonte: ZB online, 23/06/2010

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