segunda-feira, 28 de junho de 2010

Domenico Losurdo - biógrafo de Nietzsche

Entrevista*

De formação marxista, o professor de filosofia na Universidade de Urbino (Itália) Domenico Losurdo(foto) fala sobre sua biografia "Nietzsche - O Rebelde Aristocrata", que está sendo lançada no Brasil.
Destaca a importância dos aforismas na obra do pensador alemão, mas alerta que eles podem ser usados para "provar quase tudo".

Por que Nietzsche é tão popular?
Domenico Losurdo - Ele é um prosador muito fascinante, que se exprime, no mais das vezes, por meio de aforismos. Eles desdenham o cansativo concatenamento das demonstrações lógicas.
Não há leitor que não consiga tirar da obra desse filósofo um aforismo que lhe pareça particularmente iluminador. Mas isso também favorece o arbítrio.

Como é a recepção de sua obra hoje?
Em nível internacional continua a prevalecer a "hermenêutica da inocência", contra a qual meu livro polemiza. Em todo o arco da sua evolução, Nietzsche não se cansa de repetir que a escravidão é o fundamento inalienável da civilização.

Como entender isso?
O início da atividade literária de Nietzsche ocorre em meio à Guerra de Secessão (1861-65), que marca a derrota do Sul dos EUA em eternizar a escravidão negra.
Ele manifestou todo seu desprezo por Beecher-Stowe, a autora do célebre romance abolicionista "A Cabana do Pai Tomás".
Mas, onipresente em Nietzsche e no debate cultural e político da segunda metade do século 19, o tema da escravidão se dissipa ou se transforma numa inocente metáfora no âmbito da hermenêutica da inocência _(Bataille, Deleuze, Vattimo, Colli, Montinari etc.).
Assim o filósofo é "salvo", mas a um preço caro, atribuindo-se a ele uma capacidade limitada de entender e querer no campo político: ele teria feito recurso constante à "metáfora" da escravidão, estando totalmente às escuras na áspera polêmica e na luta que, sobre tal tema, se espalha em volta dele.

Está superada a tão falada relação entre Nietzsche e nazismo? Ele ainda está marcado pelo irracionalismo?
A categoria de "irracionalismo" não me parece particularmente produtiva para explicar Nietzsche e Hitler.
São claros os elementos de continuidade e descontinuidade que subsistem entre um e outro. Quando lemos em Nietzsche terríveis palavras de ordem ("aniquilamento das raças decadentes", "aniquilamento de milhões de malsucedidos"), não podemos deixar de pensar na tradição colonial e no sociodarwinismo, herdados e radicalizados por Hitler.
Também a celebração nietzschiana da escravidão nos reconduz ao nazismo. O Terceiro Reich pretendia encontrar na Europa Oriental, entre os eslavos, os escravos para trabalhar para a "raça dos senhores".
No entanto esse motivo é antípoda ao pensamento de Nietzsche, que, vivendo numa época históricadiferente (anterior à Primeira Guerra), se bate pela unidade da aristocracia de todos os países europeus, inclusive os da Europa Oriental.

O que Nietzsche tem a ensinar no século 21?
Só compreendendo o caráter extremamente reacionário do pensamento de Nietzsche é possível captar a sua grande capacidade desmitificadora.
Exatamente porque condena a abolição da escravatura, a democracia e o movimento socialista, Nietzsche acaba traçando um quadro bastante sombrio do Ocidente e, portanto, contestando sua pretensão de exportar ao mundo a "civilização", por meio da expansionismo colonial e da força das armas.
Não há dúvida de que uma crítica da "guerra humanitária" e do "imperialismo dos direitos humanos" não pode prescindir da lição de Nietzsche.
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Reportagem de MARCOS FLAMÍNIO PERES - DE SÃO PAULO
Fonte: Folha online, 28/06/2010

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