quinta-feira, 17 de junho de 2010

A POLÊMICA DE SÓCRATES

Reacionários, nós?

Sobrou para o Rio Grande do Sul. Com a vuvuzela dirigida para o ouvido de Dunga, o ex-jogador Sócrates tocou a corneta da Copa no ouvido de todos os gaúchos. Em entrevista ao jornal britânico The Guardian, o craque da Seleção de 1982 atacou:

– Dunga é gaúcho, do extremo sul do Brasil. E eles são os brasileiros mais reacionários.

É a segunda aparição de Sócrates na Copa. Na primeira, surgiu de surpresa no show de abertura por desenvolver projetos sociais no Brasil. Na entrevista, produziu uma controvérsia. Ao analisar o perfil da Seleção, atribuiu o esquema rígido do time ao temperamento de Dunga. No embalo, fez uma conexão entre o conservadorismo do time e as origens do técnico. Sócrates dissertou:

– A equipe dele é muito coerente com sua visão de mundo e sua formação. Eu entendo por que ele escolheu esse time. Só não acho que seja um time muito brasileiro.

Os gaúchos reagiram. A declaração foi parar na internet. Virou tema para debate online. Mas, antes dos gaúchos, que um carioca examine a controvérsia. O diplomata, cientista político, ensaísta e tradutor Sergio Paulo Rouanet, um dos grandes pensadores brasileiros, divertiu-se com a polêmica ao ser entrevistado por telefone, falando do Rio com Zero Hora:

– O Sócrates filósofo sempre colocava um tema dialogicamente em discussão. Nesses diálogos, a partir de uma pergunta, sugeria que se falasse de beleza, ou loucura, ou equilíbrio. Se ele aparecesse para conversar hoje com o nosso Sócrates, diria: vamos discutir o significado da palavra reacionário?

Direito de crítica

O reacionarismo, ou conservadorismo exacerbado, pode ser político ou cultural. Por qualquer enfoque, o novo Sócrates estaria equivocado. Rouanet diz:
– Eu não acredito em alma coletiva, em caráter coletivo. Seria como dizer que todo carioca é preguiçoso ou que todo paulista é um chato.

E continua, sempre reafirmando o direito de qualquer um de exercer o direito de crítica:
– Ele pode ter tentado dizer que o gaúcho é culturalmente reacionário, por causa do estereótipo de que o gaúcho é machista. Ou pode ter dito que é politicamente reacionário. Este é um dos Estados mais rebeldes do país. Teve a Guerra dos Farrapos, foi de onde partiu a rede da Legalidade contra a tentativa de golpe em 1961, foi o Estado que criou o Fórum Social Mundial, uma provocação ao fórum dos ricos. Dizer que esse é um povo reacionário é brincar com as palavras. Seria como dizer, se o técnico fosse carioca, que a Seleção estaria sob o comando de um preguiçoso.

Agora, os gaúchos. Para a escritora Lya Luft, a imagem que Sócrates tem dos gaúchos reflete o estranhamento com as nossas diferenças:
– O Brasil, do Rio para cima, é mais parecido Nós somos uma mistura de etnias, de culturas, e ainda temos a proximidade com a fronteira. Não somos melhores, nem piores, somos diferentes.

Mas Lya considera que, em parte, até é bom ser conservador:
– Chega dessa loucura, de desvarios, de falsos modernismos, de falsas liberdades. Mas ele (Sócrates) perdeu a chance de ficar quieto.
O historiador Fernando Camargo, professor da Universidade Federal de Pelotas, entende que a controvérsia segue o rastro de uma reflexão pobre, simplificadora. Mas a crítica do ex-jogador teve um objetivo:
– Não é uma frase ingênua, é maldosa. É um direito dele de expressar opiniões. Mas, para atingir o Dunga, fazendo uma conexão entre a Seleção e os gaúchos, espertamente ele atinge o Rio Grande do Sul.
Estigma de briguentos

Camargo, que estudou os entreveros bélicos do Estado, admite que, com tantas guerras, os gaúchos foram marcados pelo estigma de briguentos e prepotentes. O professor de História da América na UFPel lembra que, como em toda parte, aqui há progressistas e reacionários:
– Eu não me identifico com a cultura do cavalo e da bombacha, mas não deixo de me sentir gaúcho.

A artista plástica Maria Tomaselli também se diverte com a declaração do jogador-filósofo-sociólogo e vê algum sentido no que ele disse:
– Em parte, ele tem razão. O Rio Grande do Sul é um pouquinho atrasado. Muitas cabeças vão embora em busca de um contexto mais globalizado, são músicos, artistas plásticos. Os gaúchos ainda fazem exposição de cavalos.
E faz um contraponto, estabelecendo alguma relação entre a condição de província e o conservadorismo:
– Sócrates mora em São Paulo. O centro é mídia. Mas as periferias são cada vez mais interessantes em todo o mundo.
E Maria Tomaselli defende Dunga:
– Ele valorizou a amizade, a camaradagem, o compromisso. Desejo que ele tenha sucesso.

O músico Sady Homrich, baterista da banda Nenhum de Nós, devolve a corneta de Sócrates:
– Sempre capitaneamos as revoluções. Fomos os primeiros a clamar por justiça e a abolir a escravidão.
Sady dá uma sugestão, rindo:
– Seria bom ouvir o Raí, irmão dele.

Raí fica para a próxima. Divirtam-se com a controvérsia. Assim é uma Copa, um evento capaz de transformar duas frases em polêmica e de permitir que se confrontem as ideias de um ex-jogador com a capacidade de reflexão de um pensador do porte de Sergio Paulo Rouanet.

 
Os argumentos

A FAVOR

Alguns dos argumentos pró e contra a tese de que o gaúcho é reacionário:
- O machismo ainda é um traço marcante no Estado, e o conservadorismo é a marca de um dos principais movimentos culturais do Estado – o tradicionalismo.
- Basta um governo propor algum projeto que modifique drasticamente as cidades e o Estado, e pronto: lá vem polêmica.
- O Rio Grande do Sul é a terra natal de três dos cinco presidentes do regime militar de 1964.

CONTRA
- Tanto na Guerra dos Farrapos (1835-1845) quanto na Revolução de 1930, liderada por Getúlio Vargas, as elites do Estado se insurgiram contra o governo nacional e o status quo da época.
- O eleitor gaúcho tem colocado no Palácio Piratini um partido diferente a cada pleito.
- A Justiça gaúcha não tem dificuldades em adequar-se às mudanças na sociedade em assuntos polêmicos, como no caso do casal homossexual autorizado a adotar filhos, em uma decisão inédita no Brasil.

Um craque dos anos 80

- Um dos grandes nomes da história do futebol brasileiro, Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira deixou sua marca tanto no futebol quanto na cultura brasileira no início dos anos 80. Dono de técnica apurada, craque da jogada de calcanhar e líder da Seleção de 1982, Sócrates encabeçou ainda o movimento Democracia Corintiana.
- Pela primeira vez, decisões sobre as regras da concentração e até contratações eram debatidas pelo diretor de Futebol, o sociólogo Adílson Alves, com os jogadores. Entre 1982 e 1984, o Corinthians teve como slogan “ganhar ou perder, mas sempre com democracia”: jogadores e dirigentes votavam para decidir tudo.
- Irmão mais velho do também craque Raí, Sócrates era conhecido também pelos apelidos de Magrão (pelo físico) e Doutor (por ter se formado em Medicina).
- Hoje com 56 anos, Sócrates atua como articulista em jornais e revistas, dá palestras sobre liderança e participa do programa Cartão Verde, da TV Cultura, em São Paulo.
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Reportagem de: MOISÉS MENDES
Fonte: ZH online, 17/06/201

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