EUGÊNIO BUCCI*
O ano era 2002. Estávamos num seminário sobre comunicação numa universidade fora do Brasil e eu conversava com amigos no lobby do hotel. Um deles me indagou sobre o que eu via de substancialmente positivo na hipótese de Luiz Inácio Lula da Silva vencer as eleições que se aproximavam. Respondi com uma consideração que, na época, deve ter soado um tanto oblíqua: "O número de convidados para a mesa do poder vai ser ampliado e, com isso, as decisões de governo vão ganhar mais legitimidade e mais eficácia."
As palavras não devem ter sido essas exatamente, mas era bem isso o que eu pensava. A questão brasileira não podia ser compreendida apenas do ponto de vista econômico ou gerencial. A agenda nacional não se resolveria na base de decisões administrativas ou de plataformas macroeconômicas. Havia pontos mais sérios e mais profundos que a eleição deveria tematizar e equacionar. Dois deles eram especialmente preocupantes: o Brasil precisava admitir novos atores na esfera das grandes decisões, assim como precisava de uma liderança maior - não de um líder "messiânico", mas de um governo conduzido por um líder dotado de autoridade natural, subordinado ao Estado de Direito.
Eu considerava que a vida política do País carecia de densidade, de representatividade, de novos canais de participação. Como eleitor, não me preocupava tanto o que fazer - os programas partidários mais ou menos apontavam os mesmos desafios. O mais delicado era o como, era o método, a capacidade inclusiva das instituições. Isso me parecia mortal - ou vital. Ou a dinâmica política se mostrava à altura de incluir novos (e muitos) atores, ou a sociedade não encontraria as novas pontes de que precisava para promover a unidade em torno do aparelho de Estado.
Hoje, passados oito anos daquela conversa informal, vejo que as coisas mudaram no País. Nossa realidade política é mais saudável e mais vigilante. A vida das nossas instituições ganhou qualidade, complexidade e legitimidade. Os indicadores econômicos vão bem, quase todos eles, mas, outra vez, eu não diria que está neles a causa dos fenômenos - eles são um efeito. Para a melhoria do atendimento aos direitos, do acesso ao consumo e da atividade produtiva no País, a entrada de novos agentes nas mais altas esferas de poder foi decisiva. Em poucas palavras, o poder deixou-se compartilhar um pouco mais e isso foi positivo.
Agora, em tempos de campanha eleitoral aberta, com o furor da disputa latindo pelas ruas, a gente talvez não note, mas o País estava mais dividido há oito anos do que está agora. As instituições são mais acessíveis do que antes. Não por acaso, os erros mais graves dos dois governos Lula - alguns deles deploráveis - ocorreram precisamente quando alguns, ou muitos, conspiraram contra o espírito republicano, contra a transparência da gestão pública e contra o princípio da impessoalidade, na prática ou no discurso. Basta verificar. Cada vez mais a qualidade da nossa democracia depende do método. Cada vez menos depende de voluntarismos e de bravatas.
O presidente da República teve nisso tudo um papel de relevo, naturalmente, embora o mérito maior seja da sociedade em seu conjunto. A liderança de Lula brilhou mais quando ele soube negociar e dialogar a portas abertas, publicamente. Ela se rebaixou à negação de si própria quando o presidente afagou corruptos ou quando permitiu que razões partidárias, corporativistas ou de facções se sobrepusessem às razões de Estado e ao interesse público. Penso que o presidente não esteve à altura de seu papel quando atacou agressivamente os que divergiam dele e alimentou ressentimentos e polarizações - e, nessas passagens, eu o critiquei, aqui mesmo, neste espaço. O presidente acertou quando pôs as regras democráticas acima dos próprios interesses, como quando recusou a tese do terceiro mandato e quando apostou na união - que, na democracia, é feita também de divergências, mas de respeito mútuo.
Mas as coisas andaram bem, no geral. A era Lula ainda não se encerrou. Portanto, não há como fazer um balanço. É cedo para saber qual a real extensão dos erros (alguns dos quais é possível que ainda desconheçamos) e qual a fecundidade dos acertos. Mas, desde já, é possível começar a refletir sobre um aspecto que, para a vocação inclusiva das instituições, terá sido decisivo. Durante estes oito anos, o ingresso de novos atores nas instâncias de decisão política nos ajudou a ultrapassar preconceitos ancestrais. Parcelas da sociedade ainda os remoem, é verdade, mas o País viveu a experiência de ultrapassá-los, o que nos vai legar algum aprendizado coletivo.
Lula não é apenas um operário sem diploma de curso superior que chegou à Presidência da República. Ele é um operário sem curso superior que chegou lá e soube fazer seu governo, apesar de falhas. Seu sucesso, tanto nos índices de aprovação no Brasil quanto nos prêmios e distinções que recebe no exterior, vários deles conferidos pela imprensa livre, é um fato. Que, no futuro, ele seja avaliado por seus atos, por suas escolhas, por suas omissões, não pela origem de classe ou por sua gramática personalíssima.
Por enquanto, os dois governos Lula vão nos legando esse saldo de cultura. Eles começaram comprovando que a alternância no poder é benéfica, mostraram que o governo funciona melhor quanto mais universal é o acesso às instituições, provaram uma vez mais que o poder corrompe e que um presidente serve melhor à Nação quando se afasta do partidarismo. Agora, como em 2002, continuo acreditando que a democracia é um método. Continuo acreditando, também, que os partidos políticos são instituições essenciais, mas, hoje, acredito mais no método e menos nos partidos. Quanto a estes, estamos mal.
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*JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP Fonte: Estadão online, 17/06/2010
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