sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Não só de pão

Enzo Bianchi*

A mesa jamais é para um só; é para o outro, para os outros, para a fraternidade, o amor, a humanização: e o pão impera sobre ela para ser despedaçado e compartilhado, para nutrir e para nos lembrar que não só de pão vive o ser humano.

Lê-se no livro de Deuteronômio: "[O Senhor] te fez passar fome e, depois, te alimentou com o maná que nem tu, nem teus pais conheciam, para te mostrar que não só de pão vive o ser humano, mas de tudo o que procede da boca do Senhor" (Dt 8,3).
Jesus retoma essas palavras, enquanto se encontra no deserto, atacado pela fome depois de 40 dias de jejum, e é tentado a recorrer ao milagre de transformar em pão as pedras que estavam diante dele. Mas, ao divisor, ele respondeu: "Está escrito: 'Não se vive somente de pão, mas de toda palavra que sai da boca de Deus'" (Mt 4.4; cf Lc 4,4).
O pão necessário para viver, sem o qual vamos ao encontro da morte, não basta para fazer viver os seres humanos. É necessário algo mais do que pão, algo do qual o pão é apenas um sinal, algo que, como o pão, saiba trazer vida, mas uma vida outra com respeito à meramente biológica. O ser humano se humanizou no dia em que inventou e fez o pão, mas a sua humanização precisa de algo que transcenda o pão.
Há no ser humano, de fato, uma fome, um desejo, uma busca que não se detém no alimento: o alimento é absolutamente necessário, mas não é suficiente para que um ser humano se humanize. Cada um de nós, saiba ou não disso, por instinto, quer viver e, portanto, busca, ganha pão com o trabalho, mas isso não lhe basta: cada um busca um sentido na vida, porque é habitado por uma fome, a fome de se tornar ser humano.
A humanidade, essa condição de que cada um de nós vive e da qual é responsável, é uma condição de transição entre a animalidade e a humanidade verdadeira, e o caminho que somos chamados a percorrer é aquele jamais acabado da humanização. O grande etólogo Konrad Lorenz afirmou que "o elo perdido entre o macaco e o homem somos nós": cada um de nós é esse elo, porque a nossa tarefa é a de nos humanizar. O ser humano tem fome de se tornar aquilo que acredita ser, e esse caminho está em suas mãos, está entregue à sua liberdade, às suas fadigas individuais e coletivas, à sua responsabilidade. Tornar-se humano: essa é a grande tarefa que está diante de cada um de nós! O humanismo e o cristianismo convergem para esse objetivo. Essa busca de sentido, isto é:

•de orientação e direção (Aonde vou?);
•de significado (O que significa? Eu quero entender!);
•de ouvir o real (Como eu posso viver com plenitude com os cinco sentidos?);

faz, sim, com que o ser humano se humanize. Esse é o pão do homem para além do pão. É preciso rejeitar a proposição de Jean-Jacques Rousseau, segundo o qual "o homem é naturalmente bom, mas é a sociedade que o deprava, que o torna mau", porque nunca houve um "bom selvagem", mas a humanidade deve ser conquistada dia após dia. A nossa tarefa é a de resistir diante da desumanização, da barbárie, da bestialidade que existe em nós e de nos ativar para que seja possível uma convivência mais humana, uma terra mais habitável, uma sociedade, uma “polis” em que os seres humanos se humanizem sempre mais.
Há um caminho, há opções decisivas para a humanização? Sim, existem muitos caminhos possíveis, mas há um elementar, que resume todos eles. Antes de falar a respeito como conclusão, eu gostaria, porém, de traçar alguns caminhos essenciais, algumas vias de humanização que o cristianismo sempre elaborou e afirmou, mas que o ser humano não munido da fé também soube indicar.
Acima de tudo, há o caminho da liberdade: a liberdade deve ser exercitada; ela não é mendigada nem pedida; ela deve ser exercitada e basta. É indigno do ser humano mendigar a liberdade! No cotidiano, o ser humano sempre pode praticá-la, porque há pelo menos uma ocasião por dia em que ele não é vil, preguiçoso, medroso, mas sim livre. Sabemos bem que o poder político, econômico, ideológico são tentados a espezinhar a liberdade, mas cabe a nós exercê-la diante de tais poderes.
Junto à liberdade, é preciso afirmar a igualdade, não o igualitarismo que desconsidera as diferenças, mas sim a igualdade que requer o reconhecimento dos direitos de cada pessoa e de cada comunidade. A democracia vive se há esse reconhecimento da igualdade de cada pessoa, de cada ser humano, pessoa como eu. O teu próximo é como tu mesmo – diz o mandamento retomado e cumprido por Jesus – e ao teu lado não há mais judeu nem grego (cf. Gal 3,28; Col 3,11), nem marroquino, nem indiano... mas apenas um homem, uma mulher como tu.
Além disso, há o caminho da fraternidade, isto é, da práxis de solidariedade que tece laços fraternos, a capacidade de viver o amor entre todos os seres humanos. Isso requer sair de si mesmo para encontrar o outro, para ouvi-lo, para conhecê-lo, para se comunicar com ele, para criar laços de afeto e de convivência. Esse é o caminho da humanização, que exige responsabilidade e compromisso por parte de cada um de nós: eis do que vive o ser humano, através do que ele se humaniza em profundidade.
"A mesa jamais é para um só;
é para o outro, para os outros,
para a fraternidade, o amor,
a humanização: e o pão impera sobre ela
para ser despedaçado e compartilhado,
para nutrir e para nos lembrar
que não só de pão vive
 o ser humano."


No atual contexto social, permito-me, por fim, indicar a necessidade da resistência. Refiro-me à resistência civil, em vista do caminho de humanização, a um comportamento que requer o exercício de muitas responsabilidades: a responsabilidade ecológica, para combater o deserto que avança; a da afirmação da legalidade e da justiça, sem as quais são espezinhadas justamente a liberdade, a igualdade e a fraternidade; a da convivialidade – como definida por Ivan Illich – que significa participação de todos os seres humanos na mesa do mundo, nos recursos da terra; a da beleza, tarefa essencial para combater a feiura que nos invade. Sim, devemos afirmar e exercer o direito à resistência.
A propósito, gostaria de recordar as palavras de Giuseppe Dossetti, que, no dia 21 de novembro de 1946, como membro da assembleia constituinte [italiana], apresentou em comissão esta proposta de artigo: "A resistência individual e coletiva aos atos dos poderes públicos, que violem as liberdades fundamentais e os direitos garantidos pela presente Constituição, é direito e dever de cada cidadão". Essa moção não foi aprovada, mas o que ela exprime ainda é de extrema atualidade.
Gostaria, por fim, de falar brevemente da mesa, o lugar do pão, o lugar essencial da humanização. À mesa, deveríamos convergir para comer como seres humanos, não como animais. Por isso, a mesa sempre foi percebida como o emblema da humanização, o lugar por excelência em que nos humanizamos ao longo da vida, desde que, quando pequenos, fomos admitidos à mesa ainda na "cadeirinha" até a velhice. Nessas duas fases extremas da vida, também estamos à mesa, talvez ajudados por outros, mas estamos para sempre à mesa.
O nosso estar à mesa diz a nossa liberdade: liberdade de filhos em família, liberdade de amigos que se convidam, liberdade de quem serve e qualidade senhoril de quem é servido. Mas, à mesa, também se experimenta a igualdade, uma igualdade ordenada: todos são chamados a comer com os mesmos direitos, velhos e crianças, adultos e jovens, todos podem tomar a palavra, perguntar e responder. À mesa, aprende-se a falar além de comer, aprende-se a ouvir e a intervir na convivialidade. Enfim, à mesa se confraterniza, se compartilha o pão entre companheiros, ou seja, pessoas que comem o mesmo pão, segundo a etimologia dessa palavra (cum-panis). A mesa tem um magistério decisivo para nós e para cada ser humano que vem ao mundo: somos conscientes disso?
À mesa, aprende-se e se verifica que não só de pão que vive o ser humano, porque, quando pequenos, precisamos que alguém nos dê de comer; quando adultos, de alguém que nos prepara o alimento com amor e, com o alimento, expresse o seu amor; precisamos dar graças e entender que o que comemos não é apenas a união de natureza e cultura, mas também é dom que nos é dado.
É à mesa que celebramos o nascimento, o amor nas núpcias, os eventos que nos tornam felizes e que dão sentido à nossa vida. À mesa, nos exercitamos, ou melhor, deveríamos nos exercitar para compartilhar e para fazer da própria mesa um lugar em que acolhemos e convidamos o outro. A mesa jamais é para um só; é para o outro, para os outros, para a fraternidade, o amor, a humanização: e o pão impera sobre ela para ser despedaçado e compartilhado, para nutrir e para nos lembrar que não só de pão vive o ser humano.
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*A reflexão é do monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, prior e fundador da Comunidade de Bose, publicado no jornal La Stampa, 25-09-2011.
 A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: IHU on line, 06/10/2011

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