quarta-feira, 2 de maio de 2012

Briga de rua


 Martha Medeiros*
 
Estava voltando da minha caminhada habitual, de manhã. Foi então que vi um carro embicado na entrada da garagem de um edifício, com todas as portas abertas, e, antes que eu achasse estranho, comecei a ouvir gritos. Ao lado do carro, uma moça segurava um menino no colo, um garoto de uns quatro anos, que chorava. Chorava de medo e susto: sua mãe berrava com seu pai. Um pai igualmente descontrolado que a impedia de entrar no prédio com a criança. O que havia acontecido? Não sei, não os conheço, não imagino o que motivou esse barraco, só sei que fiquei em choque diante da cena: uma mulher no auge da sua fúria, histérica, ordenando que aquele homem desaparecesse, que sumisse, e ele chorando e ao mesmo tempo segurando-a, até que ela deu um tapão na cara dele, e outro, e a criança apavorada, e eu, parada a poucos metros de distância, sem saber se acudia, se fugia, sem um celular para chamar alguém – vá que ele esteja armado? Aquilo poderia terminar em tragédia. Cheguei a pedir, ingenuamente, parem, conversem depois, olhem as crianças, e foi então que me dei conta de que elas estavam mesmo no plural, havia outra criança presa a uma cadeirinha dentro do carro, uma menina de não mais que dois anos, que chorava também. A essa altura, outros transeuntes pararam, circundamos o casal, mas todos sem ação, imobilizados pelo ditado “em briga de marido e mulher não se mete a colher”, mas não se mete mesmo? Uma senhora tentou tirar o menino do colo da mãe para que ele não recebesse um safanão sem querer, mas o menino, lógico, esticou os braços e quis voltar, a despeito de todos os riscos que nem sabia que estava correndo, e o que mais me impressionava nem era aquele homem em lágrimas impedindo a passagem dela, nem o menino que chorava diante de uma cena que jamais irá esquecer, mas a mulher, a mulher que não chorava, e sim berrava “NÃO TOCA EM MIM!”, berrava “SAI DA MINHA FRENTE!”, berrava e batia naquele homem que era duas vezes o seu tamanho, berrava de uma maneira surtada, assustadora, com uma voz que nem parecia vir dela, mas da fera que a habitava, berrava com uma raiva e um tormento que não podiam ser maiores. Ela havia chegado ao seu limite. Dali em diante, ela iria matá-lo, se matá-lo fosse possível.

Foi então que entendi como acontecem esses crimes passionais que não testemunhamos, que costumam ocorrer entre quatro paredes: por algum motivo, um homem ou uma mulher, ou ambos, tornam-se irracionais. Não se escutam, não conversam, não preservam os filhos, não percebem o entorno, viram dois selvagens, até que um deles escape ou morra.

Ela escapou. Um rapaz interveio, segurou o homem, ela entrou no prédio com as duas crianças. Ele ficou socando o chão, fora de si. Tudo isso numa das avenidas mais movimentadas da cidade, às 11h da manhã. Voltei pra casa arrasada. Nunca saberei quem era a real vítima da história, quem estava com a razão, e não estranharia se hoje os encontrasse de mãos dadas, com as pazes feitas, que isso é mais comum do que se pensa. Mas a violência do ato existiu, e foi testemunhada por duas crianças.

Na verdade, por três crianças. O mundo adulto, ali, me fechava as portas.
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* Escritora. Cronista da ZH
Fonte: ZH on line, 02/05/2012
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