Arnaldo Jabor*
Eu escrevia um artigo sobre a felicidade como obrigação do mercado, quando li o texto de Contardo Calligaris na Folha, que citava uma pesquisa sobre o tema, chamada "Procurar a felicidade pode fazer as pessoas felizes?".
Diz um trecho da pesquisa: "Espera-se que aqueles que buscam a
felicidade alcancem resultados benéficos. Não necessariamente (diz a
pesquisa) porque quanto mais valorizam a felicidade, mais poderão se
decepcionar."
Eu penso: que felicidade? A de ontem ou a de hoje?
Antigamente, a felicidade era uma missão a ser cumprida, a conquista
de algo maior que nos coroasse de louros; a felicidade demandava
"sacrifícios".
Hoje, o mercado demanda uma felicidade dinâmica e incessante, como
uma "fast-food" da alma. O mundo veloz da internet, do celular, do
mercado financeiro nos obriga a uma gincana contra a morte ou velhice.
Ser deprimido não é mais "comercial". É impossível ser feliz como nos
anúncios de margarina, é impossível ser sexy como nos comerciais de
cerveja.
A felicidade hoje é "não" ver. Felicidade é uma lista de negações.
Não ter câncer, não ler jornal, não olhar os mendigos na rua, não ter
coração. A felicidade é ter bom funcionamento. Há décadas, McLuhan falou
que os meios de comunicação são extensões de nossos braços, olhos e
ouvidos. Hoje, nós é que somos extensões das coisas. Fulano é a extensão
de um banco, sicrano comporta-se como um celular, beltrana rebola feito
um liquidificador.
Felicidade é ser desejado, é entrar num circuito comercial de sorrisos e festas e virar um objeto de consumo.
Sem a promessa de eternidade, tudo vira uma aventura. Em vez da
felicidade, temos o gozo rápido do sexo em vez do longo sofrimento
gozoso do amor.
O amor hoje é o cultivo da "intensidade" contra a "eternidade". Aí, a
dor vem como prazer, a saudade como excitação, o instante como eterno.
"O prazer não quer ter fim.
A felicidade é analógica e
o
prazer digital."
Por isso, perdemos esperanças de plenitude e celebramos sonhos
efêmeros. Bem - dirão vocês - resta-nos o amor... Mas, onde anda hoje em
dia, esta pulsão chamada "amor"? O amor não tem mais porto, não tem
onde ancorar, não tem mais a família nuclear para se abrigar. O amor
ficou pelas ruas, em busca de objeto, esfarrapado, sem rumo. Não temos
mais músicas românticas, nem "olhos de ressaca", nem o formicida com
guaraná. É o fim do "happy end". Mas, mesmo assim, continuamos ansiando
por uma felicidade impalpável.
Por isso, em vez da felicidade, cresce o império do prazer.
Mas o prazer pode nos dar culpa e a culpa pode dar prazer. Os
masoquistas sabem disso: todo prazer será castigado. O prazer deixa
muito a desejar, o prazer nos deixa insatisfeitos porque acaba logo. O
prazer sempre demanda mais prazer, orgias mais perversas, drogas mais
alucinantes. O prazer não quer ter fim. A felicidade é analógica e o
prazer digital. A felicidade ficou chata, tem de ser administrada, e é
feita também de sofrimentos e dúvidas. O prazer não; pega, mata e come.
As caras das revistas ostentam uma gargalhada eterna. O prazer quer
botar o mundo para dentro, sugar, comer a vida como um pudim, pela boca,
por todos os buracos. Prazer é "cool". Felicidade é careta.
Mas o prazer (infelizmente) precisa da proibição. Antigamente,
tínhamos pecados perfumando os prazeres, mas hoje ficou tudo no instante
pleno, principalmente no sexo, para substituir frustrações políticas e
sociais.
Nosso prazer anda muito exclusivista; o chamado "outro" não passa de um pretexto para nosso narcisismo masturbatório.
Aliás, o vício solitário é bem seguro. A punheta é onisciente e gira
em todas as direções, é um caleidoscópio de mulheres ou de homens. Não
me refiro à mera "coça na miúda", nem no "estrangulamento do
pele-vermelha", mas à masturbação na alma, ao narcisismo de seres
perdidos num deserto de possibilidades sem-fim. Em meio a tanta
liberdade, nunca fomos tão solitários. A masturbação existe até no
grande amor romântico, onde os dois narcisismos se beijam, se arranham,
mas não se comunicam. Cada vez mais o parcial, o fortuito é gozoso. Só o
parcial nos excita. Temos de parar de sofrer por uma plenitude que
nunca alcançamos.
"A matéria nos
sonha com tanta perfeição
que pensamos que temos espírito.
O prazer da matéria é paciente.
Só sentiremos um grande prazer
quando não estivermos
mais presentes."
Não há mais "todo"; só partes. Não se chega a lugar nenhum porque não
há onde chegar. A felicidade não é sair do mundo, como privilegiados
seres, como estrelas de cinema, mas é entrar em contato com a falta de
sentido de tudo. Usamos uma máscara sorridente, um disfarce para nos
proteger desse abismo. Mas esse abismo é nossa salvação. A aceitação do
incompleto é um chamado à vida. Temos de ser felizes sem esperança.
Mas aí, dirá o leitor mais sábio e, talvez, mais velho: "Sim, mas e a
contemplação calma da natureza, os lagos dourados, as flores e as
crianças correndo, e as auroras, os céus estrelados? E a arte? Isso não é
prazer?" Sim, sim, mas por trás dessa calma contemplação de auroras e
belezas, florestas e oceanos, há um ensaio para o fim, há o preparo para
o maior prazer de todos, há a saudade oculta de algo que está mais além
da vida, ou antes dela. Entre flores e lagos dourados contemplamos
nosso fim. É uma saudade não sabemos de quê...
É um prazer além do prazer (v. Freud), é o prazer da matéria. A
matéria quer paz. Nós somos um transtorno para a matéria que quer voltar
a seu silêncio. A vida e o prazer enchem o saco da matéria que é
obrigada a nos suportar. A matéria olha nossos arroubos de vida e espera
pacientemente que acabe a valentia para voltarmos ao prado, à grama, à
terra, ao sossego da tumba. Mais além do princípio do prazer, está a
invencível vontade de morrer. Somos sonhados pela matéria da qual somos
apenas um tremor, um despautério, uma agitação banal. A matéria nos
sonha com tanta perfeição que pensamos que temos espírito.
O prazer da matéria é paciente. Só sentiremos um grande prazer quando não estivermos mais presentes.
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* Jornalista. Cineasta. Escritor. Colunista do Estadão.
Fonte: Estadão on line, 04/06/2012
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