Johan Konings*
|
Já
me disseram que alguns dos meus artigos caberiam melhor na rubrica
‘religião’. Não concordo. Minhas reflexões sobre o ser cristão devem
ter um lugar no espaço público, ao lado da economia e do futebol. Ainda
que Deus me seja mais íntimo do que meu próprio íntimo, como disse
Agostinho, o lugar onde ele manifesta sua presença é o mundo que eu
habito e que me habita –e que me dá as palavras do meu dizer.
Deus não é um passageiro clandestino, confinado no espaço sagrado. A fé em Deus não é propriedade particular, mas riqueza a ser partilhada. A teologia, explicação de nossa percepção de Deus e de nossa fé, não deve ficar reservada a correligionários usando jargão inacessível. Não é só para padres e assemelhados, enquanto para os fiéis comuns bastaria o Catecismo. Aliás, o próprio Catecismo se apresenta na linguagem da teologia ensinada nos seminários... Melhor seria se fosse a da teologia pública!
Convém que a explicação da fé cristã seja oferecida no espaço público, em diálogo com os interlocutores honestos e sinceros que aí se encontrarem, crentes ou não. Em primeiro lugar, porque aquilo que não se pode explicar aos outros ‘animais racionais’ talvez não seja racional. Por racional não entendemos o raciocínio formal, silogístico, mas aquilo que razoavelmente se pode conversar com as pessoas normais, mostrando que faz sentido e não é absurdo.
Uma segunda razão para o diálogo público da teologia é que esta se insere numa tradição cultural, dela se alimenta e, por sua vez, a enriquece. Os autores bíblicos não recearam acolher, dos povos vizinhos, determinadas imagens, símbolos e conceitos que traduzissem a própria percepção de Deus –adaptando-os e marcando as devidas diferenças. Isso lhes permitia dialogar com seus semelhantes que encontravam no intercâmbio cultural, comercial etc. O grande exemplo de ‘inserção cultural’ foi a teologia dos primeiros cristãos, que traduziram os conceitos e imagens bíblicos, enraizados na cultura judaica, para o mundo grego e latino, contribuindo decisivamente para a cultura da Ásia ocidental e da Europa.
Uma terceira razão é que a teologia pode apontar para todos os dotados de razão os limites dessa mesma razão, e isso faz bem. É importante poder dizer, em termos que as pessoas em geral entendem, que nossa percepção humana não é a última palavra (nem a primeira). A teologia traduz para a compreensão universal almejada pela racionalidade –e consciente dos limites desta–, a percepção subjetiva da transcendência, a poesia e a mística, sem as quais o ser humano, crente ou não, se torna inumano.
Uma quarta razão é que a teologia fala de coisas práticas que devem ser partilhadas com os demais sujeitos no espaço humano e cidadão. Por exemplo, a questão operária. Toda a tradição bíblica judaica e cristã insiste no tratamento justo do trabalhador. “No próprio dia darás ao trabalhador seu salário, antes do pôr do sol” (Deuteronômio 24,15). Isso não pode ficar escondido no debate público em torno do trabalho. Outro exemplo: o cuidado do meio ambiente. A representação bíblica de Adão como jardineiro e cuidador do jardim do Éden (Gênesis 2,15) contém uma mensagem para o atual debate. O mesmo se diga da unidade de homem e mulher, unidos em amor constante, que se desprende de Gênesis 2,23-24. O crente não pode guardar suas convicções práticas para si, a não ser que se encapsule numa sociedade à parte. O que, hoje em dia, seria impossível, pois há muito gente se movimentando no mesmo espaço...
Na mesma linha, em vista inclusive da atual histeria em torno do ‘Estado laico’ –que já espetei e tornarei a denunciar–, não se pode excluir do espaço público, nem da discussão política, compreensões da vida humana e opções práticas inspiradas pela convicção religiosa. Esta é tão humana quanto uma ideologia política. Desde que tal convicção seja argumentada em contexto e modo democráticos.
Finalmente, importa contemplar o diálogo entre as diversas religiões e mundivisões, mesmo ateias ou agnósticas. Mas isso exige uma explanação mais ampla, que deixo para outra oportunidade.
Cristãos menos acostumados a esta abordagem talvez temam que tal teologia saia do âmbito da fé e se torne ‘secularizada’. Isso seria perigoso somente se ‘secular’ significasse alheio a Deus. Mas se se entende por secularidade o que diz respeito à realidade do mundo (‘saeculum’ em latim significa mundo), é um grande avanço para a fé, pois torna Deus mais presente no mundo que ele mesmo fez e faz surgir. A ‘encarnação’ de Deus é uma doutrina fundamental da fé cristã. Por isso, o mundo humano deve ser o mundo em que a presença e ação de Deus são ‘levados à fala’. Entre pessoas respeitosas, deve ser tão natural falar de Deus e de sua fé como falar de futebol (o que também só se deve fazer com pessoas que tenham respeito...).
Deus não é um passageiro clandestino, confinado no espaço sagrado. A fé em Deus não é propriedade particular, mas riqueza a ser partilhada. A teologia, explicação de nossa percepção de Deus e de nossa fé, não deve ficar reservada a correligionários usando jargão inacessível. Não é só para padres e assemelhados, enquanto para os fiéis comuns bastaria o Catecismo. Aliás, o próprio Catecismo se apresenta na linguagem da teologia ensinada nos seminários... Melhor seria se fosse a da teologia pública!
Convém que a explicação da fé cristã seja oferecida no espaço público, em diálogo com os interlocutores honestos e sinceros que aí se encontrarem, crentes ou não. Em primeiro lugar, porque aquilo que não se pode explicar aos outros ‘animais racionais’ talvez não seja racional. Por racional não entendemos o raciocínio formal, silogístico, mas aquilo que razoavelmente se pode conversar com as pessoas normais, mostrando que faz sentido e não é absurdo.
Uma segunda razão para o diálogo público da teologia é que esta se insere numa tradição cultural, dela se alimenta e, por sua vez, a enriquece. Os autores bíblicos não recearam acolher, dos povos vizinhos, determinadas imagens, símbolos e conceitos que traduzissem a própria percepção de Deus –adaptando-os e marcando as devidas diferenças. Isso lhes permitia dialogar com seus semelhantes que encontravam no intercâmbio cultural, comercial etc. O grande exemplo de ‘inserção cultural’ foi a teologia dos primeiros cristãos, que traduziram os conceitos e imagens bíblicos, enraizados na cultura judaica, para o mundo grego e latino, contribuindo decisivamente para a cultura da Ásia ocidental e da Europa.
Uma terceira razão é que a teologia pode apontar para todos os dotados de razão os limites dessa mesma razão, e isso faz bem. É importante poder dizer, em termos que as pessoas em geral entendem, que nossa percepção humana não é a última palavra (nem a primeira). A teologia traduz para a compreensão universal almejada pela racionalidade –e consciente dos limites desta–, a percepção subjetiva da transcendência, a poesia e a mística, sem as quais o ser humano, crente ou não, se torna inumano.
Uma quarta razão é que a teologia fala de coisas práticas que devem ser partilhadas com os demais sujeitos no espaço humano e cidadão. Por exemplo, a questão operária. Toda a tradição bíblica judaica e cristã insiste no tratamento justo do trabalhador. “No próprio dia darás ao trabalhador seu salário, antes do pôr do sol” (Deuteronômio 24,15). Isso não pode ficar escondido no debate público em torno do trabalho. Outro exemplo: o cuidado do meio ambiente. A representação bíblica de Adão como jardineiro e cuidador do jardim do Éden (Gênesis 2,15) contém uma mensagem para o atual debate. O mesmo se diga da unidade de homem e mulher, unidos em amor constante, que se desprende de Gênesis 2,23-24. O crente não pode guardar suas convicções práticas para si, a não ser que se encapsule numa sociedade à parte. O que, hoje em dia, seria impossível, pois há muito gente se movimentando no mesmo espaço...
Na mesma linha, em vista inclusive da atual histeria em torno do ‘Estado laico’ –que já espetei e tornarei a denunciar–, não se pode excluir do espaço público, nem da discussão política, compreensões da vida humana e opções práticas inspiradas pela convicção religiosa. Esta é tão humana quanto uma ideologia política. Desde que tal convicção seja argumentada em contexto e modo democráticos.
Finalmente, importa contemplar o diálogo entre as diversas religiões e mundivisões, mesmo ateias ou agnósticas. Mas isso exige uma explanação mais ampla, que deixo para outra oportunidade.
Cristãos menos acostumados a esta abordagem talvez temam que tal teologia saia do âmbito da fé e se torne ‘secularizada’. Isso seria perigoso somente se ‘secular’ significasse alheio a Deus. Mas se se entende por secularidade o que diz respeito à realidade do mundo (‘saeculum’ em latim significa mundo), é um grande avanço para a fé, pois torna Deus mais presente no mundo que ele mesmo fez e faz surgir. A ‘encarnação’ de Deus é uma doutrina fundamental da fé cristã. Por isso, o mundo humano deve ser o mundo em que a presença e ação de Deus são ‘levados à fala’. Entre pessoas respeitosas, deve ser tão natural falar de Deus e de sua fé como falar de futebol (o que também só se deve fazer com pessoas que tenham respeito...).
--------------------------
* Johan Konings nasceu na Bélgica em 1941, onde se tornou Doutor
em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina, ligado ao Colegio
para a América Latina (Fidei Donum). Veio ao Brasil, como sacerdote
diocesano, em 1972. Foi professor de exegese bíblica na Pontifícia
Universidade Católica de Porto Alegre (1972-82) e na do Rio de Janeiro
(1984). Em 1985 entrou na Companhia de Jesus (jesuítas) e, desde 1986,
atua como professor de exegese bíblica na FAJE - Faculdade Jesuíta de
Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte, onde recebeu o título de
Professor Emérito em 2011. Participou da fundação da Escola Superior Dom
Helder Câmara.
Fonte: http://www.domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=2886
Nenhum comentário:
Postar um comentário