A vida de Juan Gabriel Vásquez, assim como a de seus personagens
literários, está condicionada pelos grandes acontecimentos históricos.
Nascido em Bogotá em 1973, o escritor viveu de perto o período de
extrema violência causada pelo narcotráfico nos anos 1980 e começo dos
1990 na Colômbia e acabou deixando o país por isso. Agora, após 16 anos
na Europa, Vásquez se prepara para voltar. Antes, ele visita o Brasil
para participar da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) e
lançar o livro "A História Secreta de Costaguana" (L&PM). De
Barcelona, o escritor conversou por telefone com o Valor.
Valor: Você deixou a Colômbia em 1996, passou
pela França, esteve um tempo na Bélgica e 12 anos na Espanha. Como vai
ser voltar depois de tanto tempo?
Juan Gabriel Vásquez: Vai ser estranho. É uma
decisão que não é só minha, tem a ver com questões pessoais da minha
mulher. Vai ser uma mudança importante. Eu sempre me senti bem na
condição de estrangeiro. É cômodo para mim, me sinto bem morando em um
lugar que não é o meu. É algo que me dá tranquilidade para fazer e dizer
coisas que talvez eu não faria ou diria no país. Agora não sei como
será. Tenho pensando bastante nisso.
Valor: Você sempre escreveu sobre a Colômbia estando fora. E agora, como vai ser?
Vásquez: O romance que eu acabo de começar ainda
acontece na Colômbia, mas já tenho em mente um seguinte que fala de
Barcelona, a história acontece em grande parte aqui. De modo que parece
que estou seguindo esse roteiro: ir dos lugares para começar a falar
deles.
Valor: A mesa em que o você está na Flip é sobre
história e ficção. Parece bem acertada, porque nos seus livros há um
tema constante: como os grandes acontecimentos históricos afetam a vida
das pessoas "comuns".
Vásquez: Já no meu primeiro livro eu comecei a me
obcecar com essa ideia de que a vida pública sempre acaba se metendo em
nossas vidas privadas, condicionando-a, dando-lhe forma. Digamos que
esse lugar onde a História com maiúscula se encontra com nossas pequenas
histórias íntimas me interessa muito. Explorar o que acontece aí, como
acontece, como a história pública molda nossas vidas, é o assunto para o
qual dediquei três livros inteiros. Nos dois primeiros ["Os
Informantes", de 2004, e "A História Secreta de Costaguana", de 2007] eu
tentava averiguar quais os eventos que, desde um ponto de vista
histórico, haviam me afetado. Nós somos resultados de um processo que
nos transcende, que é maior que nós. No terceiro livro ["El Ruído de las
Cosas al Caer", de 2011, ainda inédito no Brasil] percebi que as marcas
que essa experiência na Colômbia me deixou estavam em nível mais
íntimo. Queria saber como era isso. Não de um ponto de vista da
História, mas da memória. O que aconteceu? No que me afetou ter nascido
nessa época de violência extrema? Eram essas as minhas perguntas.
Valor: É muito forte dizer que a História também condicionou a sua vida, a decisão de ir embora da Colômbia...
Vásquez: Não é forte, é bem certo isso. E escrever
esse último livro foi, em boa parte, um exercício de memória, de tentar
pensar em como isso me marcou. Percebi, com surpresa, que as pessoas
dessa geração compartilham essa ideia do medo, de que você não pode
controlar sua vida, e de ter que conviver com a incerteza. Só que
naquele momento não tínhamos isso claro. Desenvolvemos estratégias
emocionais e mentais para conviver com a ameaça e o medo. Escrever esse
romance foi, sobretudo, trazer isso à tona, tirar as proteções mentais e
ver como isso realmente nos havia afetado.
Valor: Seria possível escrever uma novela como essa estando na Colômbia?
Vásquez: Eu também me pergunto isso. Minha teoria é
de que não teria sido possível. Demorei muito não só para escrever sobre
isso, mas para pensar nisso. Quando saí da Colômbia esses assuntos não
estavam no meu radar de interesse. O gênero narco na literatura é algo
que eu sempre desprezei. O primeiro surpreendido quando comecei a
escrever uma história que tocava o mundo do narcotráfico e do terrorismo
fui eu mesmo. Acho que a possibilidade de falar sobre isso veio por eu
ter me separado desse universo. Eu saí da Colômbia em 1996 com uma
sensação de repulsa, uma necessidade de deixar as coisas para trás e
esquecer. E foi só a distância que permitiu que eu recuperasse isso.
Valor: Você já esteve no Brasil? Já havia escutado falar da Flip?
Vásquez: Só estive uma vez e em uma situação
pitoresca. Era capitão do time de futebol do meu colégio, em um
campeonato latino-americano que aconteceu no Rio. Eu tinha 16 anos. Foi
minha única visita: fui para jogar futebol. O que me parece muito bom,
porque o futebol é muito importante. Ficamos em terceiro lugar e quem me
entregou a medalha e o troféu foi o Zico, que era um grande ídolo da
minha infância. No ano retrasado havia uma possibilidade de que me
convidassem para a Flip, mas eu preferi guardar esse convite para quando
meus livros tivessem sido lançados no Brasil, senão não teria muito
sentido. É uma feira fantástica com bons amigos.
Valor: Por que demoraram tanto para publicar no
Brasil seus livros? "História Secreta" é de 2007 e vai sair agora. E seu
último livro nem tem previsão para ser lançado.
Vásquez: No sentido inverso também a coisa é lenta. É
uma situação bastante ridícula contra a qual creio que escritores e
jornalistas deveríamos nos rebelar. Na história do século XX houve,
sempre, uma falta de comunicação total entre Brasil e a América
hispânica que me parece completamente absurda. Acho que já é hora de
quebrar essa parede. Quanto à tradução, não demoraram muito mais do que
em outras línguas. O que acontece é que fazendo parte do mesmo
continente e de uma sensibilidade muito similar, parece absurdo que
aconteça isso. E também que em espanhol se demora tanto para que
escritores como João Paulo Cuenca sejam traduzidos.
Valor: Você tem curiosidade para saber como fica um livro seu traduzido? Costuma olhar isso?
Vásquez: O que me interessa é saber se o tradutor
entendeu a música. Meus livros têm tons muito diferente entre eles. E o
tom, a música dessa linguagem, é que me interessa. E numa língua latina
como o português eu posso ver se o tradutor pegou isso. Ainda que eu não
entenda o significado das palavras, o som e o ritmo se percebe. E o que
faço é de não me preocupar muito como fica a tradução em hebreu ou
chinês porque aí sim eu não tenho nada que fazer.
Valor: Parece que o fato de ser bastante lido incomoda algumas pessoas na Colômbia. Você tem muitos inimigos lá?
Vásquez: Quando meus livros começaram a ter certo
reconhecimento eu experimentei na carne isso que o Neruda dizia: para
cada elogio receberás dois insultos. Às vezes a proporção é maior. Isso
se agrava porque tenho uma coluna política em um jornal colombiano e
gosto de utilizar esse espaço para denunciar os desmandos da Igreja,
defender o aborto e a legalização das drogas, por exemplo. São temas
muito espinhosos e a Colômbia é um país muito conservador. Isso também
gera inimigos, mas não só não me preocupa, senão acho que demonstra que
algo de valor estou fazendo para receber tantos ataques.
Valor: E ter ganho um prêmio importante [Alfaguara em 2011], muda alguma coisa? Gera uma cobrança maior?
Vásquez: Não vejo assim. Primeiro porque, pelo menos
no meu país, nem os elogios nem os ataques são feitos pelas razões
corretas. A literatura nunca tem a ver com isso. Segundo porque meu
projeto literário sempre esteve muito claro na minha cabeça e um prêmio
não vai mudar isso. Sei qual tipo de livros tenho que escrever. O prêmio
é um acidente e a ampliação do público por causa dele também. Não acho e
nem espero que meus próximos livros tenham tantos leitores e não vou
escrever para que isso aconteça. Escrevo por razões pessoais e
encontrarei os leitores interessados.
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Reportagem Por Ricardo Viel | Para o Valor, de Madri
Fonte: Valor Econômico on line, 04/06/2012
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