segunda-feira, 9 de novembro de 2009

"Deus não existe": polêmica antológica sobre ateísmo



O livro "Dios no Existe", antologia de artigos de pensadores e escritores de todas as épocas, é outra ação militante contra a religião, fonte de violência e submissão para o organizador britânico Christopher Hitchens.

A reportagem é de Gustavo Varela, publicada na Revista Ñ, do jornal Clarín, 07-11-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Deus está morto: assim sentenciou F. Nietzsche em seu livro "A Ciência Gaia", em 1882, há mais de um século. No entanto, as discussões contemporâneas em torno do pensamento religioso e da presença de deus nas práticas humanas parecem contradizer essa proclamação e inaugurar o retorno de um problema filosófico que a modernidade, supúnhamos, havia despachado para sempre.
Gianni Vattimo, Richard Rorty, Jürgen Habermas, Jacques Derrida, Hans Gadamer, dentre outros, escrevem, discutem, se reúnem em mesas redondas ou em conversações teóricas para falar de religião, e então Deus, a Bíblia, o sagrado, a trindade, Moisés ou a fé voltam a fazer parte de uma bateria conceitual filosófica que acreditávamos obsoleta.
Por quê? Qual é a necessidade desse retorno? Não estava claro que o pensamento crítico exige o fim das religiões ou de qualquer outra forma de clausura transcendente? Não é o suficiente a ciência para a verdade, com o acordo para a moral, com a democracia para a política, ou com a psicanálise para a angústia existencial? Depois de Nietzsche, de Freud e de Marx, é preciso voltar a pensam em Deus ou na religião ou em uma força divina para edificar o nosso pensamento humano?
Ao longo da modernidade, e particularmente no século XX, aprendemos a pensar sem deus: a antropologia, a política, a sociologia, a psicanálise, a pedagogia, enfim, todas as formas contemporâneas de pensar excluem deus de seu quadrado de explicações. Quais são as razões desse retorno do religiosa à reflexão teórica?
Não há dúvida de que habitamos o fim de uma época. A crise do pensamento moderno, anunciada em milhares de páginas sob o prefixo pós (pós-modernidade, pós-humanos, pós-industrial etc.) implica em um giro e em uma metamorfose nos conceitos e nos valores sobre os quais o sentido das práticas humanas havia se edificado desde o século XVII em diante. Depois da morte teórica de Deus, assistimos o fim da Verdade, dos grandes relatos, da objetividade, da história, das ideologias, da ética humanista. O pensamento contemporâneo parece se referir à queda como um modo de afirmar a incerteza à qual está exposto quando perde a sustentação que a razão lhe ofereceu por mais de 300 anos. A demolição do edifício moderno deixa escombros: culpas, ausências, reconstruções, críticas, obsessões, abandono, reordenamentos. O fim da metafísica e do niilismo que lhe seguiu, anunciado por Nietzsche e depois por Heidegger, é um de seus efeitos.
A necessidade de uma nova ontologia é outro. Deleuze, Badiou, Sloterdijk, Negri, Baudrillard, entre tantos autores, fazem-se cargo da devastação moderna e, sem a necessidade de Deus, elaboram toda uma siderurgia teórica para fraguar os fundamentos filosóficos em um novo solo.
É nessa perspectiva de reconhecimento do fim da metafísica na qual se localiza o filósofo italiano Gianni Vattimo. Mas, longe daqueles teóricos que prescindem de Deus, Vattimo volta sobre o pensamento religioso e afirma que o niilismo pós-moderno, o "pensamento fraco" tal como ele o chama, é a "verdade atual do cristianismo". Isso, longe de ter um olhar crítico sobre a época contemporâneo, é uma afirmação positiva enquanto supõe a queda dos grandes relatos, a derrubada da verdade objetiva da ciência e, com isso, a possibilidade da interpretação e a emergência da diferença.
Se a verdade é uma "experiência de participação em uma comunidade", a diferença nas diversas interpretações é possível graças à verdade do amor, a caridade. O fato de se supor uma verdade objetiva, isto é, transcendente à história, é a fonte dos fundamentalismos; a hermenêutica, como possibilidade de interpretação, é a experiência de uma existência histórica, não só da verdade, mas também dos homens. Por isso, para Vattimo, a encarnação de Deus em Cristo é "a renúncia à sua própria transcendência", isto é, o desdobramento de um cristianismo antimetafísico, em que Deus é mundano, está rebaixado e fora do céu e longe de ser uma verdade objetiva que deve se impôr como único fundamento, é uma mensagem histórica de salvação, isto é, de interpretação. A partir dessa perspectiva, a morte de Deus anunciada por Nietzsche, pode ser vista como "a morte de Cristo na Cruz narrada pelos Evangelhos".
O niilismo é o fim da metafísica e o império da diferença, só possível por meio do amor. Isto é, diante da intolerância dos fundamentalismos, Vattimo propõe a caridade cristã como o único valor que nos permite aceitar as diferenças e reduzir a violência. A religião retorna, no pensamento do filósofo italiano, como "não-religião", isto é, não como um dogma nem como instituição indiscutível.
Diante de posições como a de Vattimo, em que o religioso é visto e recuperado a partir do fim da modernidade, outras leituras insistem em levar Deus a juízo e a submetê-lo ao tribunal da razão. O motivo principal dessas interpretações de corte iluminista é a de enfrentar os totalitarismos políticos de base religiosa, em que o fundamento divino transcende necessariamente as fronteiras da religião e se faz violência terrorista, atentado e morte.
A queda das Torres Gêmeas em setembro de 2001, além de uma reflexão sobre suas derivações na política do Ocidente, abriu novamente o debate sobre a existência de Deus e os efeitos que as crenças religiosas produzem na vida dos homens. Longe de abandonar os postulados da modernidade, aqui se afirma o poder da razão e a verdade da ciência como um princípio que permite desarticular o obscurantismo religioso e demonstrar a falsidade de todos os seus enunciados. Isto é, "aumentar as luzes", como afirma o filósofo Michel Onfray em seu "Tratado de ateologia" (WMF Martins Fontes, 2007), insistir no iluminismo moderno, levá-lo ao extremo, com o fim de libertar os homens da barbárie e da ignorância.
Trata-se, de alguma maneira, de seguir mantendo a vocação higiênica que a modernidade manifesta com relação às crenças religiosas, mediante a clareza argumentativa e a verdade luminosa que a razão nos oferece. Se o fanatismo do crente produz guerras, atentados e morte; se sob o nome de Deus se realizam sacrifícios, mutilações ou abusos; se os argumentos religiosos se opõem aos argumentos de cientistas, não se trata então de incorporar Deus de um modo mais pacífico e privado, mas sim de demonstrar uma e outra vez a falsidade de sua existência; de compreender que todas as religiões não são mais do que superstições inventadas pelos homens com o fim de continuar sustentando uma forma de domínio cruel sobre seus semelhantes.

Deus não existe

Essa é a perspectiva que defende o livro "Dios no existe. Lecturas esenciales para el no creyente" (Debate, 2009), do escritor e jornalista inglês Christopher Hitchens. Esse ensaio, de recente publicação, é uma extensa antologia de textos que vão de Lucrécio, poeta e filósofo romano do século I a.C., até autores do século XXI, em que todas as reflexões escolhidas compartilham de um pensamento crítico e, em muitos casos, devastador contra a existência de Deus.
Na introdução, Hitchens afirma de imediato seu olhar sobre a religião e a preocupação que o leva a publicar seu livro: a crença em Deus é uma peste (o texto começa com uma referência à novela de Albert Camus), e "esta antologia pretende identificar e isolar esses bacilos com maior precisão". Com a mesma urgência, refere-se aos atentados com carros-bomba do ano 2007 em Londres (sua cidade natal), em que, em nome da religião, "o ódio e a violência estão envenenando todas as vidas".
Isto é, o livro se apresenta não apenas como uma defesa do ateísmo militante que o autor defende, mas sim como uma necessidade de tomar consciência dos efeitos terroríficos que a religião produz na vida contemporânea. Esse livro é, de certa forma, a continuação de um livro anterior de Hitchens ("Dios no es bueno. Alegato contra la religión"; Debate, 2008), em que o autor, depois de uma análise crítica da religião e de seus efeitos – "A religião mata?", "A religião como pecado original", "A religião é uma modalidade de abuso de menores?" são alguns de seus capítulos – faz um apelo à resistência da razão e à necessidade de uma novo Iluminismo que sustente, como único objeto de estudo, não Deus ou seus messias ou seus livros sagrados, mas sim o homem e a mulher. No entanto, e apesar da clareza que a ciência atual oferece, Hitchens acredita que é "necessário também reconhecer o inimigo [deus] e dispôr-se a combatê-lo".
Nessa batalha iluminista em que "Dios no existe" se inscreve, já não não como um discurso, mas sim como uma genealogia do ateísmo que inclui autores dos diversos ramos do pensamento e dos diversos períodos históricos da cultura ocidental. Desde a prosa dos "Rubáiyat", de Omar Jayam, do final dos anos mil, à voz de Darwin em sua "Autobiografia"; filósofos como David Hume ou Karl Marx; escritores como Joseph Conrad, George Orwell ou John Updike; S. Freud, Carl Sagan, Anatole France, Einstein, Lovecraft ou Mark Twain, em uma extensa e muita completa reconstrução cronológica de pensamentos que, de um modo ou outro, criticaram a ideia de Deus ou diretamente afirmaram sua inexistência.
A antologia finaliza com a escritora de origem islâmica Ayaan Hirsi Ali, que, atualmente, vive oculta e ameaçada de morte pela jihad por causa de sua defesa dos direitos das mulheres muçulmanas. Seu artigo "Como (e por que) me tornei infiel" é um pequeno ensaio autobiográfico que descreve o caminho que a levou da submissão religiosa muçulmana ao ateísmo que hoje defende. Não é só um pensamento, mas também a descrição de uma prática concreta de abandono da ideia de Deus, uma emancipação que teve a razão como guia e o respeito a si mesma como "bússola moral". Uma experiência de infidelidade que Christopher Hitchens escolhe para encerrar seu livro, talvez como uma forma de dizer que não só é possível viver sem Deus, mas que, tratando-se do "inimigo mais antigo da humanidade", é vital e necessário.
Para defender a religião ou para devastar definitivamente o poder de deus, o certo é que a filosofia do século XXI continua administrando as consequências do fim da modernidade e do ingresso em uma nova época para a qual ainda não temos um pensamento. O ressurgimento de certos problemas é um sinal da devastação teórica com a qual nos enfrentamos. Enquanto isso, tanto a razão quanto a fé continuam trocando suas cartas e acusando-se mutuamente dos monstros que produzem.
Fonte: IHU/Unisinos, 09/11/2009

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