João Pereira Coutinho*
Lembrar o comunismo será sempre lembrar uma
viagem em família a
um mundo de silêncio
TINHA TREZE anos quando o Muro de Berlim caiu. Mas já não era um rapazinho virgem (politicamente falando, é claro). Leituras romanescas tinham desmontado o comunismo, pedra por pedra, até só restar a evidência do horror. Koestler ou Soljenítsin tinham sido os artífices dessa preciosa desconstrução. Mas faltava ainda a experiência pessoal.
Ela veio. Em agosto de 1989. Os meus pais, historiadores de formação, sugeriram uma viagem à Romênia. O programa era simples: sete dias em Bucareste, a capital; e mais sete no sul, em Olimp, um balneário. Para "relaxar", diziam eles, com intocável otimismo.
Fomos. Da Romênia, tinha imagens fantasmagóricas de vampiros e donzelas mortalmente mordidas. O cinema, sempre o cinema, essa divina corruptela.
Errei por pouco. No aeroporto de Bucareste, ninguém era recebido como turista. Apenas como intruso. Depois da revista marcial, encostados à parede de pernas abertas (recordo a minha mãe, irônica e nervosa, declarando em voz alta que fizera uma mamografia meses antes), veio um interrogatório longo, apurado, com perguntas ridículas. "Que vêm fazer à Romênia?", perguntava o guarda. "Turismo", respondíamos nós. Descobri rapidamente que as respostas eram mais ridículas do que as perguntas. Ninguém fazia turismo na Romênia.
Viagem para o hotel. Noite em Bucareste: as ruas sujas, escuras e desertas, como se alguém tivesse envenenado o ar.
Não eram apenas as ruas a exibir desolação: os romenos, talvez o povo mais triste que encontrei na vida, falavam baixo, olhavam baixo. E pediam muito: cigarros, roupa, creme de barbear e, entre as senhoras, os inevitáveis produtos íntimos.
Sete dias em Bucareste e dei por mim contrabandista: de leite, pão, pasta de dentes. E não apenas para os empregados de hotel, que faziam as suas encomendas em sigilo.
Certa vez, caminhando pelas ruas fúnebres da cidade, aproximei-me de uma vitrine, como se as vitrines tivessem algo para mostrar. Só um turista acreditava em milagres e os habitantes sabiam disso. Por isso, esperavam que os estrangeiros se aproximassem de vitrines vazias para fazerem descer cestos dos andares cimeiros, mendigando as preciosidades habituais. Cigarros, roupa, produtos íntimos. Doces para as crianças. "Qualquer coisa", gesticulavam eles. Quem parava nas vitrines não comprava nada. Mas oferecia tudo. Então o cesto voltava a subir pela mesma corda por onde descera. As janelas fechavam-se.
Uma semana passou: semana lenta, porque lentas eram as horas em Bucareste, esse mausoléu pétreo e gris que Nicolau Ceausescu construira sobre os escombros da belíssima cidade antiga.
E o ditador aparecia em todas as esquinas: cartazes de propaganda gloriosa, ao estilo norte-coreano. Ele, pai do povo. Ao lado, a mulher, Elena. Na viagem para Olimp, o guia turístico ainda confessou que, apesar de não ter estudos, a mulher de Ceausescu fazia questão de assinar todas as descobertas científicas do país. Ela própria, aliás, ostentava orgulhosamente o título de "Primeira Dama e Maior Cientista da Romênia". Eu ria da piada. Não era piada. O guia turístico, um estudante de matemática que fazia visitas nas horas livres, contou tudo sem rir.
A última semana foi passada junto ao mar. Semana sem história: a mesma mendicidade dos serviçais; a mesma penúria nas lojas; praias vigiadas e com horário; praias privadas para os membros do Partido; o casal Ceausescu, sorridente e confiante, pairando acima da miséria e da infelicidade. E a pergunta: até quando seria possível prolongar essa mentira?
Quatro meses, eis a resposta. Quando, no Natal daquele ano, os romenos fizeram a sua revolução e regressaram ao mundo dos vivos, ninguém estranhou lá em casa.
Sim, eu tinha 13 anos em 1989. Mas, ao deixar a Romênia em finais de agosto, até um rapaz de 13 anos percebe os limites da falsidade. Os limites da desumanidade. Longe ainda vinham os tempos em que, por treino acadêmico, eu acabaria por estudar as "contradições" do "socialismo real": a falência econômica do sistema marxista; a natureza totalitária dos regimes comunistas; as obras de Kolakowski ou Karl Popper, que hoje ensino a alunos que nasceram depois de 1989 e para os quais o Muro de Berlim fica, algures, na Pré-História.
Mas lembrar o comunismo e o seu fim será sempre lembrar uma viagem em família a um mundo de medo e de silêncio. Um mundo onde até o mar parecia rugir em surdina.
*Escritor. Colunista da Folha.
Fonte: Folha de São Paulo, 10/11/2009
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