Rubem Alves*
Quero é viver intensamente de novo o passado que vivi,
sem os sentimentos de culpa
que a religião botou na minha cabeça
QUEM diria que o Riobaldo era profeta ecumênico? Foi ele mesmo que me disse: "Eu, cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Rezo cristão, católico e aceito as preces de compadre meu Quelemém, do Cardéque. Mas, quando posso, vou no Mindubim, onde um Matias é crente, metodista: a gente se acusa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles..."
Também eu não perco ocasião de religião. Tenho sangue católico nas veias. Meu avô ia ser padre. Lá no sobrado no sótão, ficavam guardadas as velharias numa canastra. Entre elas, uma carta do meu avô, adolescente, interno do Caraça, pedindo dez tostões para comprar uma batina nova.
Tenho também sangue de espírita, que eles chamam de "espiritualista" ou kardecista. Eu estava em São Paulo, puxei conversa com o motorista do táxi, perguntei de onde ele era. "Sou de Macuco", respondeu. "Macuco? Conheço muito... É perto de Lavras do Funil onde vivi desde menino..." O taxista se sentiu mais íntimo. "Lavras é lugar de um espírito de luz, médico que anda pelo mundo dos sofredores curando doenças..." "E como é que ele se chama?", perguntei. "É o doutor Augusto Silva..." Dei uma risadinha: "O doutor Augusto Silva foi meu tio..."
E tenho também sangue de protestante. A gente tinha ficado pobre por causa da crise de 1929. Fomos morar numa casa de pau a pique emprestada. Rico que fica pobre tem de mudar para longe. Todo mundo foge dele, com medo de que ele peça dinheiro emprestado.
Mas havia um homem que não fugia, se aproximava e visitava. Era o seu Firmino, evangelista protestante que prometia as riquezas do céu para aqueles que sofriam as pobrezas da terra. A pobreza do meu pai: não tinha dinheiro para pagar escola para os filhos.
Mas o seu Firmino conhecia os missionários protestantes donos do Instituto Gammon, em Lavras. Ele mexeu os pauzinhos e o Gammon deu bolsas de estudo para os meus irmãos. Ficamos então protestantes; não por conversão, por gratidão.
Pois não é que Deus, mesmo sabendo da minha religiosidade, anda me pregando umas peças? Meus amigos tentam interceder, inutilmente. E uma amiga querida me sugeriu que eu ficaria melhor se abandonasse minha incredulidade e acreditasse na reencarnação. Com a reencarnação tudo se explica e há a certeza de um final feliz...
"Pois saiba você que eu acredito na reencarnação", eu disse. "Faz tempo anunciei a minha conversão num artigo de nome esquisito: "oãçanracneeR'". Reencarnação ao contrário: não de trás para adiante, mas de diante para trás.
Não quero evoluir para frente nem ficar parado no eterno presente do céu... O céu me dá claustrofobia.
Além do que não quero evoluir.
Muitas coisas não podem e não devem evoluir: saíras de sete cores, riachinhos, ipês floridos, a "Nona Sinfonia", uma preta jabuticaba são seres perfeitos. Como seria uma jabuticaba evoluída? Uma jabuticaba cúbica? Esse objeto é divino, não pode e não deve ser melhorado. O que eu quero não é evoluir. Quero é viver de novo intensamente o passado que vivi, sem os sentimentos de culpa que a minha religião botou na minha cabeça.Toda noite peço perdão a Deus pelos pecados que não cometi...
Assim, quando já são poucas as jabuticabas na minha tigela, rezo o meu pai-nosso herético erótico: "O prazer nosso de cada dia dá-nos hoje..."
*Educador. Escritor.
rubem_alves@uol.com.brFonte: Folha on line, 10/11/2009
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