Roberto Mangabeira Unger*
O ex-ministro e professor de direito em Harvard
defende 8 pontos essenciais para criar um novo modelo de desenvolvimento
para o Brasil
Oito séries de opções definem o modelo de desenvolvimento que convém ao Brasil.
Modelo que transforma a ampliação de oportunidades econômicas e educativas no motor do crescimento. E que afirma a primazia dos interesses do trabalho e da produção sobre os interesses do rentismo.
1. Reposicionamento na divisão internacional do trabalho
O país deve optar contra um caminho, como o da Nova Zelândia ou o do Chile, que combine produção e exportação de produtos primários com tentativa de formar uma elite internacionalizada de serviços.
O Brasil é grande demais para abandonar sua vocação industrial. Ao manter-se fiel a ela, precisa também optar contra estratégias como a que a China seguiu: apostar, por muito tempo, em trabalho barato e desqualificado. Não prosperaremos como uma China com menos gente.
2. Financiar internamente nosso desenvolvimento
Dividir ao meio a pseudo-ortodoxia econômica que os governos brasileiros abraçaram em décadas recentes. Reafirmar a parte útil -o realismo e a responsabilidade fiscais-, mesmo à custa de renunciar, por algum tempo, a instrumentos de uma política contracíclica.
Repudiar a parte nociva -a tolerância de nível baixo de poupança pública e privada e a consequente dependência do capital estrangeiro para financiar nosso desenvolvimento. Em tese, o nível de poupança é mais efeito do que causa do crescimento.
A mobilização inicial dos recursos nacionais representa, entretanto, condição para afirmar uma estratégia rebelde e inovadora de desenvolvimento. A elevação da poupança pública requer disciplina fiscal. Já para elevar a poupança privada, temos de construir mecanismos que organizem e aproveitem a poupança previdenciária. O aumento da poupança privada e pública será, porém, indiferente ou nocivo sem canais que encaminhem a poupança de longo prazo para o investimento de longo prazo. E que evitem que o potencial produtivo se desperdice num cassino financeiro. Investimento e inovação: esse é o binômio crucial.
3. Redefinir a política agrícola
Agropecuária, ainda a principal atividade econômica do Brasil, tem tudo para exemplificar o vínculo entre diversificação da produção e democratização das oportunidades.
Para isso, precisa pautar-se por três objetivos entrelaçados. Fazer da agricultura familiar agricultura empresarial. Agregar valor aos produtos agropecuários no campo. Construir classe média rural forte como vanguarda de uma massa de trabalhadores agrícolas mais pobres que avançará atrás dela.
Esse projeto vingará no contexto da solução do maior problema físico de nossa agricultura: a recuperação de pastagens degradadas que hoje formam grande parte do território nacional. (No Brasil, em cada hectare sob lavoura há quatro entregues à pecuária extensiva.) Se recuperarmos parte desse espaço, dobraremos a área cultivada e triplicaremos nosso produto agrícola sem tocar em uma única árvore.
4. Reorientar a política industrial
Se abrirmos para as pequenas e médias empresas o acesso ao crédito, à tecnologia, ao conhecimento, aos mercados globais, criaremos um dínamo de crescimento includente. São elas a parte mais importante de nossa economia; é ali que se gera a maior parte do produto e é ali que está a vasta maioria dos empregos.
Organizar fora dos centros industriais uma travessia direta do pré-fordismo industrial para o pós-fordismo industrial. E isso sem que todo o país tenha de penar no purgatório de um paradigma de produção -produção em grande escala de bens e serviços padronizados, por meio de mão de obra semiqualificada e processos produtivos rígidos e hierárquicos- que já se vai tornando superado no mundo e que inibe nossa ascensão na escalada da produtividade.
O Brasil todo não deve ter de virar a São Paulo de meados do século passado para depois tornar-se outra realidade.
5. Reorganizar as relações entre trabalho e capital
Não se inova nisto desde Vargas. A maior parte do povo brasileiro está fora do regime legal.
Quase metade da população economicamente ativa continua na informalidade. Parte crescente dos empregados na economia formal se encontra em situações precarizadas, de trabalho temporário, terceirizado ou autônomo. Construir, ao lado do regime estabelecido de leis trabalhistas, um segundo corpo de regras, destinado a proteger, a organizar e a representar os trabalhadores inseguros das economias informal e formal.
6. Capacitar o povo brasileiro
A primeira prioridade é reconciliar a gestão local das escolas pelos Estados e municípios com padrões nacionais de investimento e de qualidade: federalizar -na prática, não apenas na lei- os padrões. Para reconciliar gestão local e padrões nacionais, é preciso criar um instrumento para consertar redes de escolas locais que caiam repetidamente abaixo do patamar mínimo aceitável de qualidade.
O meio é associar os três níveis da federação em órgãos conjuntos que possam vir em socorro dessas escolas, assumi-las temporariamente, confiá-las a gestores profissionais independentes e devolvê-las consertadas. A segunda prioridade é mudar a maneira de aprender e de ensinar no Brasil. Substituir decoreba -o enciclopedismo informativo superficial- por ensino analítico e capacitador, com foco no básico: análise verbal e análise numérica.
O lugar para iniciar esta obra é o elo fraco: a escola média. E o instrumento mais promissor é a educação secundária com fronteira aberta entre o ensino geral e o ensino técnico. Ensino geral que subordine memorização a análise. Ensino técnico que priorize o domínio de capacitações práticas flexíveis e genéricas, ao invés de priorizar a aprendizagem de ofícios rígidos.
7. Reconstruir o Estado
Não existe ainda no Brasil o Estado capaz de executar o programa que aqui se esboça. Nosso Estado continua a ser balofo e incapaz. Há três agendas de gestão pública a executar simultaneamente. A primeira agenda, a do profissionalismo burocrático, é a obra incompleta do século 19 em matéria de administração pública. Temos ilhas de profissionalismo no Estado. Continuam a flutuar em um oceano de discricionariedade política.
A segunda agenda, a da eficiência administrativa, está associada ao século 20. Reinventar para o setor público práticas de gestão empregadas no setor privado: padrões de desempenho, garantias de transparência, mecanismos, dentro e fora do Estado, para avaliar, incentivar e cobrar resultados. Transformar o direito e o processo administrativos. Metade do que temos é camisa de força, baseada em desconfiança. A outra metade é o oposto: a delegação de poderes discricionários a potentados administrativos. Ambas as metades precisam ser substituídas por regras e procedimentos que permitam reconciliar fidelidade aos objetivos com flexibilidade na execução.
A terceira agenda, a ser característica do século 21, é a do experimentalismo na maneira de prover os serviços públicos, inclusive de educação e saúde. Não precisamos escolher entre a provisão burocrática de serviços padronizados de baixa qualidade e a privatização desses serviços em favor de empresas em busca de lucro. O Estado pode ajudar a organizar e a financiar a sociedade civil independente para que ela participe da provisão competitiva e experimental dos serviços prestados pelo Estado ao cidadão. É a melhor maneira de qualificá-los.
8. Institucionalizar a cultura republicana
O primeiro ponto de partida é substituir o federalismo de repartição rígida, de competências entre os três níveis do federalismo, por um federalismo cooperativo que os associe em ações conjuntas e em experimentos compartilhados.
O segundo ponto de partida é adotar medidas que comecem a tirar a política da sombra corruptora do dinheiro. Financiar publicamente as campanhas eleitorais para diminuir a influência do dinheiro privado.
Rever o processo orçamentário para que o orçamento deixe de ser palco pantanoso da negociação entre os interesses poderosos. Substituir a maior parte dos cargos de indicação política por carreiras de Estado. Utopia? Tudo isso é factível com instrumentos que já temos à mão. O objetivo é dar braços, asas e olhos à vitalidade brasileira.
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*ROBERTO MANGABEIRA UNGER é professor titular de direito na Universidade Harvard (EUA), ex-ministro extraordinário de Assuntos Estratégicos (2007-09) e ex-colunista da Folha.
Fonte: Folha online, Caderno Mais - 31/01/2010