domingo, 31 de janeiro de 2010

O fim do mundo

*Rubem Alves

A gente, criança, acreditava no fim de mundo. Não sei quem foi que fez a maldade de fazer a gente acreditar em coisa que nunca viu... De noite, na cama, o medo crescia. Mas o medo crescia mais quando ameaçava tempestade, as nuvens pretas sem nem um azulzinho se mostrando, os relâmpagos estralando no meio do céu. O dilúvio deve ter sido assim. A chuva caindo sem parar por quarenta dias e quarenta noites, a água subindo, parecido com o que está acontecendo em São Paulo, as terras secas e matas se transformando em mares, as pessoas desesperadas, as grávidas, os nenezinhos recém-nascidos, que pecado haviam cometido para ter um fim tão terrível, os velhinhos que não podiam andar, e a bicharada toda com exceção dos peixes se afogando. Exceto Noé e a sua família que, de dentro da segurança da arca tudo contemplavam. E Deus impassível, contemplando o horror da sua obra.

O dilúvio nos ensinou que Deus morava no rodamoinho do terrível. Os grandes acreditavam e foram eles que contavam a estória. E prá confirmar o fim mesmo, definitivo, do fim dos tempos, estava tudo escrito no livro do Apocalipse, o evento horrendo descrito nos seus mínimos detalhes.

Michelangelo, pra ajudar os que precisam de ver para crer, pintou o fim do mundo num afresco gigantesco na Capela Sistina. Não sei se prá dar felicidade ou prá dar mais medo... Acho que prá dar mais medo. Quanto maior o medo, mais forte é a religião na cabeça e no coração das pessoas.

Conheço só uma descrição alegre do fim do mundo. Gustaf Mahler era de uma modesta família judia. Em 1897 tornou-se católico ao que parece para fugir da perseguição que sofria como profissional. Sua descrição alegre do fim do fim do mundo encontra-se na sua Segunda Sinfonia, também chamada Sinfonia de Ressurreição. Não contente com a pura execução da sinfonia ele a explicou por meio de um texto:

“Uma voz se faz ouvir. Chegou o fim de todas as coisas vivas. O dia do julgamento chegou e o terror desse dia dos dias está sobre nós. A Terra treme, as sepulturas se abrem, os mortos ressuscitam e caminham numa procissão sem fim. Poderosos e fracos dessa Terra, reis e mendigos, justos e injustos — todos eles caminham. Um grito terrível, pedindo perdão e misericórdia fere os ouvidos. O grito vai ficando cada vez mais forte. Nossos sentidos nos abandonam e perdemos consciência à medida em que se aproxima o julgamento eterno. Soa o grande chamado. Ouvem-se então as trombetas apocalípticas.”

Até aqui tudo combina com a cena pintada por Michelangelo que é a cena ortodoxa. Mas nesse momento Mahler subverteu o final. É o fim do mundo, sim. Mas o fim do mundo é só alegria.

“No meio de um silencio sinistro ouve-se o canto distante de um rouxinol como uma última reverberação da vida aqui de baixo. O coro celestial de santos canta suavemente ‘Ressuscitareis!’ A glória de Deus é revelada. Uma luz maravilhosa envolve os corações. Tudo é tranquilidade e felicidade. E eis! Não há julgamento! Não há nem pecadores e nem justos, nem poderosos e nem humildes, nenhuma vingança ou recompensa. Um poderoso sentimento de amor permeia tudo e tudo se enche com a Sua presença...”

Os Maias e os Astecas também acreditavam que o universo terminaria quando se cumprissem os anos de sua existência. Um guia turístico do México, me explicando uma pirâmide, me disse que os maias e os astecas acreditavam que o universo era regido por um calendário, o ciclo do tempo se completando em 49 anos, que é 7 vezes 7. Aí, quando chegava o finzinho do ano 48, e o mundo deveria acabar em um ou dois dias, todos paravam, ninguém trabalhava ou cozinhava, esperando a catástrofe terrível, e até se punham a ajudar os deuses, destruindo tudo o que havia. Na minha idade, 76 anos, eu já teria passado por um fim do mundo, possivelmente dois... Aí o fim não acontecia. Concluíam então que os deuses haviam resolvido começar tudo de novo, punham-se a rir e a dançar sobre as ruínas do mundo que terminara, e tratavam de construir um mundo novo que começava do nada. O trágico se transformava em festa. Acho que tem sabedoria nisso. É preciso morrer para renascer. Ou, como disse Nietzsche, somente onde há sepulturas há também ressurreições.

Mas no nosso mundo, dominado pela técnica e pela ciência, ninguém acredita mais. As pessoas educadas sabem que a Terra não vai acabar com tsunamis e terremotos, a menos que um gigantesco meteoro se choque com ela — o que não é impossível. Mas pode ser que ela venha a acabar de um outro jeito... Os dinossauros nunca imaginariam o seu fim. Pensavam que, se alguém iria desaparecer, seriam as lagartixas fraquinhas, pequenininhas, molinhas, não eles fortões, grandões, durões. Mas com tanta desgraça acontecendo, tsunamis, vendavais, frio e neve como nunca se viu, terremotos destruindo e matando centenas de milhares de pessoas — a gente religiosa se pergunta “o que é que Deus está fazendo?” Pois ele não sabe tudo com antecedência e pode fazer o que quiser? Basta piscar um olho para evitar a catástrofe! Será que ele deixou de gostar da gente? Abandonou as grávidas, nenezinhos, velhos? Estamos órfãos nesse universo sem fim? Ou será que ele ficou fraquinho, sem forças para parar tsunami e terremoto embora queira?
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*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
Fonte: Correio Popular online, 31/01/2010
http://www.cpopular.com.br/mostra_noticia.asp?noticia=1672443&area=2220&authent=602730353340326005301733623242  

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