Marcelo Gleiser*
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Somos criaturas espirituais num cosmo que só mostra indiferença
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Algo paradoxal ocorre quando nos deparamos com nossa "pequenez" perante a Natureza.
Por um lado, vemo-nos como seres especiais, superiores, capazes de construir tantas coisas, de criar o belo, de transformar o mundo através da manipulação de matéria-prima, da pedra bruta ao diamante, da terra inerte ao monumento cheio de significado, dos elementos químicos a plásticos, aviões, bolas e pontes. Somos artesãos, meio como as formigas, que constroem seus formigueiros aos poucos, trazendo coisas daqui e dali, erigindo seus abrigos contra as intempéries do mundo.
Por outro lado, vemos nossas obras destruídas em segundos por cataclismas naturais, prédios que desabam, cidades submersas por rios e oceanos ou por cinzas e lava, nossas criações arruinadas em segundos, feito os formigueiros que são achatados sob as sandálias de uma criança, causando pânico geral entre os insetos.
O paradoxo se intensifica mais quando olhamos para o céu e vemos a escuridão da noite ou o azul vago do dia, aparentemente estendendo-se ao infinito, uma casa sem paredes ou teto, sem uma fronteira demarcada. E se pensamos que cada estrela é um sol, e que tantas delas têm sua corte de planetas, fica difícil evitar a questão da nossa existência cósmica, se estamos aqui por algum motivo, se existem outros seres como nós -ou talvez muito diferentes- mas que, por pensar, também se inquietam com essas questões, buscando significado num cosmo que só mostra indiferença.
O que sabemos dos nossos vizinhos cósmicos, os outros planetas do Sistema Solar, não inspira muito calor humano. Vemos mundos belíssimos e hostis à vida, borbulhantes ou frígidos, cobertos por pedras inertes ou por moléculas que parecem traçar uma trilha interrompida, que ia a algum lugar mas, no meio do caminho, esqueceu o seu destino. Só aqui, na Terra, a trilha seguiu em frente, criou seres de formas diversas e exuberantes, compromissos entre as exigências ambientais e a química delicada da vida.
Se continuarmos nossa viagem para longe daqui, veremos nossa galáxia, soberana, casa de 300 bilhões de estrelas, número não tão diferente do total de neurônios no cérebro humano. A pequenez é ainda maior quando pensamos que a Terra, e mesmo o Sistema Solar inteiro, não passa de um ponto insignificante nessa espiral brilhante que se estende por 100 mil anos-luz. Porém, se o que vemos no Sistema Solar, a incrível diversidade de seus planetas e luas, é uma indicação, imagine que surpresas nos esperam em trilhões de outros mundos, cada um um grão de areia numa praia.
Ao olhar para o Universo, o homem é nada. Ao olhar para o Universo, o homem é tudo. Esse é o paradoxo da nossa existência, sermos criaturas espirituais num mundo que não se presta a questionamentos profundos, um mundo que segue, resoluto, o seu curso, que procuramos entender com nossa ciência e, de forma distinta, com nossa arte.
Talvez esse paradoxo não tenha uma resolução. Talvez seja melhor que não tenha. Pois é dessa inquietação do ser que criamos significado, conhecimento e aprendemos a lidar com o mundo e com nós mesmos. Se respondemos a uma pergunta, devemos estar prontos a fazer outra. Se nos perdemos na vastidão do cosmo, se sentimos o peso de sermos as únicas criaturas a questionar o porquê das coisas, devemos também celebrar a nossa existência breve. Ao que parece, somos a consciência cósmica, somos como o Universo pensa sobre si mesmo.
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Dedico esse texto ao meu querido Luiz, que hoje faz 60 anos.
__________________________________________________*MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do livro "A Harmonia do Mundo"
Fonte: Folha online, 31/01/2010 - http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe3101201002.htm
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