Jornalista americano admirador da obra de Clarice Lispector, Benjamin Moser dedicou cinco anos a uma biografia da autora
Americano natural do Estado do Texas, no sul dos Estados Unidos, o jornalista e escritor Benjamin Moser (foto ao lado) passou cinco anos no Brasil, entregue a uma tarefa movida por amor: retratar, em uma biografia para o público de língua inglesa, a personalidade de Clarice Lispector (1920 – 1977).
– Eu achava injusto que ela não fosse conhecida fora do Brasil. E os anos foram passando, eu esperando que alguma outra pessoa fizesse alguma coisa sobre ela. Porque achei que alguém iria abordar um assunto tão interessante, tão dramático, tão importante, só que ninguém fez.
Como ninguém tomava para si a tarefa de retratar a vida de Clarice e levar adiante o encantamento com sua obra, o jovem Moser (hoje com 33 anos e colaborador regular da New York Review of Books) começou ele próprio a pesquisar a vida da autora de A Hora da Estrela, romance cuja descoberta ele compara a uma história de amor.
Entrevistando familiares e amigos de Clarice, Moser concluiu, ao final de cinco anos, Why this World?, que ganhou edição recente no Brasil pela Cosac Naify com o nome de Clarice, (assim mesmo, com a vírgula no título), biografia que reconstitui não apenas a vida de Clarice Lispector e seus antecedentes familiares, mas elabora um amplo painel histórico do Brasil no qual a autora viveu e ao qual esteve ligada mesmo quando corria mundo ao lado do marido diplomata.
É a obra de um leitor apaixonado que busca penetrar no mistério de sua paixão, no misticismo exacerbado e na agudeza metafísica da autora. Com isso, Moser pretende também divulgar essa obra para os leitores sem acesso ao original em português. Um objetivo em parte cumprido dada a boa repercussão do livro no estrangeiro, merecendo resenhas elogiosas. O The New York Times definiu o livro como uma biografia “energicamente pesquisada e finamente redigida”, e autores consagrados de língua inglesa, como Jonathan Franzen e Colm Tóibin, elogiaram a obra. Por telefone, de Amsterdã, onde reside, Moser concedeu a seguinte entrevista sobre Clarice, e o Brasil e seu trabalho traduzido na terra da autora.
Cultura – O senhor morou cinco anos no Brasil. Foi aqui que descobriu a obra de Clarice ou essa vinda para o Brasil foi em parte por causa dela?
Benjamin Moser – Nenhum dos dois. Eu havia estudado português nos Estados Unidos e tinha conhecido Clarice, entre outros escritores, em uma aula de literatura lá. Depois, fui para o Brasil para estudar português e fiquei seis meses da primeira vez. E depois sempre acabei voltando, a Clarice me trouxe de volta muitas vezes.
Cultura – E o que levou o senhor a escrever sobre uma figura como Clarice?
Moser – A primeira coisa foi que, quando ainda estava na faculdade, eu li A Hora da Estrela. E fiquei fascinado pelo livro. Depois eu vim para o Brasil, fiz outras coisas. Mas como eu disse para outra pessoa esses dias: tem muita coisa que a gente acha interessante na vida sem que nos dediquemos a ela tantos anos. Mas eu achei que Clarice era uma vida que precisava ser contada mundo afora. Porque no Brasil Clarice já estava tão famosa que não precisava mesmo de mim, todo mundo sabia quem era. Mas fora do Brasil eu achava injusto que ela não fosse conhecida. E os anos foram passando, eu esperando que alguma outra pessoa fizesse alguma coisa. Porque eu achei que alguém iria abordar um assunto tão interessante, tão dramático, tão importante, só que ninguém fez. Acabei indo fazer eu mesmo.
Cultura – O processo da biografia, como foi? Qual o grau de dificuldade para reconstituir a trajetória de uma personagem deliberadamente tão evasiva sobre sua vida pessoal e sua biografia?
Moser – Se olhasse para trás sabendo agora tudo o que houve de difícil nesse projeto, acho que eu ficaria espantado e não o faria. Mas você não sabe disso no início, você só vai cavando, lendo, entrevistando, viajando, pesquisando e aos poucos você depara com os desafios do assunto, que são, numa biografia, até políticos, porque eu conto coisas no livro que são muito doloridas, por exemplo, e você tem de lidar com a família, para quem isso não é uma abstração histórica, e sim uma coisa que aconteceu com familiares muito próximos. E é um processo muito lento, até do ponto do vista financeiro, eu não tinha noção de quanto isso ia custar no início. Você compra uma passagem para o Brasil e fica dormindo no sofá de amiga. Mas não sabe o que isso vai implicar ao longo dos anos. Mas felizmente foi uma coisa sempre prazerosa de fazer, eu adorei.
Clarice nos anos 1950 e 1960: beleza enigmática
Cultura – O senhor citou a família. Na sua biografia, o senhor revela alguns pontos delicados da trajetória da autora, como o fato de que a mãe de Clarice foi violentada em um pogrom na Ucrânia, ou a descoberta que Clarice faz dos diários da mãe. Como a família reagiu ao projeto?
Moser – Eu não poderia ter publicado esse livro sem a colaboração da família e sobretudo do filho da Clarice, Paulo, que me ajudou muito. Isso não implica que todo mundo tenha gostado. São histórias como a da mãe, que você citou, e que nem todo mundo na família sabia. Você tem uma certa responsabilidade de contar isso de uma maneira que deixe o contexto inteligível. Esse livro não tem nada de sensacionalista. A história da mãe, por exemplo, aconteceu há 90 anos. Aquela mulher já morreu há quase 80 anos, as filhas dela também, mas mesmo assim essas coisas são dolorosas. E acho que os familiares apreciaram o fato de eu não haver contado isso de maneira sensacional. Eu conto no devido contexto e com o devido respeito pelo que essas pessoas sofreram, que foi horrível. Por outro lado, várias pessoas na família disseram “que bom que você contou isso, porque assim as pessoas vão saber o que a família passou, o que os judeus passaram”. Porque são coisas... As pessoas lembram do Holocausto, por exemplo, mas não sabem muito sobre o que aconteceu na Ucrânia naquela época. E isso é fundamental para entender a obra da Clarice.
Cultura – O senhor não se detém nos aspectos biográficos de Clarice, mas traça um panorama abrangente do próprio Brasil. Essa é a diferença entre a sua biografia e outras já publicadas sobre ela?
Moser – Fiquei muito grato e muito surpreendido de saber que, quando o livro saiu no Brasil e eu estive aí para o lançamento, muitos brasileiros ficaram contentes com aquele retrato que fiz das várias situações socio-econômicas e políticas em diferentes épocas. Porque eu tinha feito isso para dar um contexto ao estrangeiro. O brasileiro não precisa que ninguém conte quem foi Getúlio Vargas, por exemplo, mas na Europa e nos Estados Unidos você precisa contar. Mas no Brasil as pessoas também acharam interessante a maneira de vincular os acontecimentos. Porque Clarice muitas vezes foi tida como uma escritora abstrata, que nada tinha que ver com a realidade do Brasil, e eu tentei mostrar que isso não era verdade, que ela era muito ligada ao que estava acontecendo, não só politicamente, mas nas artes, na Cultura. E os leitores no Brasil gostaram. Fiquei surpreso com isso.
“Eu a amo, não é uma coisa abstrata
é sobretudo amor”
Cultura – O livro teve uma boa recepção crítica nos Estados Unidos, principalmente levando-se em conta tratar de uma escritora pouco conhecida por lá e que escrevia em uma língua de pouca expressão. Isso o surpreendeu?
Moser – Todas as resenhas falaram justamente que a Clarice era uma desconhecida que merecia ser mais conhecida. Foi com esse espírito que fiz o livro. Eu sou resenhista, tenho uma coluna de livros numa revista de Nova York, e recebo milhares de livros em casa. Sei quantos livros bons existem por aí que não têm nenhuma repercussão, e tinha medo de que isso pudesse acontecer com o meu. Mas eu apostei que era um assunto tão interessante e tão importante que, se eu fizesse uma coisa que explicasse como era fascinante essa mulher, as pessoas iam gostar. Fiquei pasmo com a reação lá. Porque eu esperava algumas resenhas, mas não o ponto que o livro alcançou.
GRANDE AMIZADE
Clarice conheceu Erico e Mafalda Veríssimo em Washington,
nos Estados Unidos, em 1953,
quando ela acompanhava o marido,
o diplomata Maury Gurgel Valente,
que servia na capital americana, e
Erico assumiu o posto de diretor cultural na União Pan-Americana.
Clarice e Mafalda (na foto) cultivaram ali uma amizade
que perdurou com o retorno ao Brasil.
Cultura – O senhor diz que Clarice estava vinculada a seu tempo. Mas a esquerda contemporânea de Clarice a chamava de “alienada”. O senhor acha que a distância e o ambiente menos polarizado ideologicamente contribuíram para uma nova maneira de ler a obra de Clarice?
Moser – Há duas perguntas aí. A que fala sobre o pessoal da esquerda não gostar de Clarice tem uma parte de verdade e outra que não é. De um lado, ela foi o que hoje se diria de esquerda, mas da esquerda democrática, não da esquerda comunista, numa época em que a única escolha era o comunismo tipo Fidel Castro ou a direita de Augusto Pinochet, digamos. Acho que as pessoas que cresceram depois daquela polarização da sociedade não sabem o que era isso, e fazem críticas a Clarice que não fariam a outros que se comprometeram com pessoas menos admiráveis, como Oscar Niemeyer, que anda por aí elogiando Stálin, ou García Márquez, que é amigo de Fidel Castro. Clarice era de esquerda e democrática. Outra parte da pergunta é que Clarice sempre foi lida de maneira ideológica. Isso também aconteceu com o feminismo, leitura que eu não endosso. Clarice para mim é mais complexa. Ela fala de coisas que são eternas. E que são as perguntas clássicas que todos temos sobre a vida e a morte, Deus. As coisas do mundo são sempre sazonais. Hoje todos falam de Haiti, há cinco anos era o Iraque, antes o Afeganistão. Essas coisas vão e vêm, mas as perguntas eternas ficam. E uma artista como ela, que consegue dar respostas tão novas, tão sérias e tão lindas é a artista que perdura.
Cultura – Na biografia o senhor conta que Clarice, embora já aclamada por nomes como Fernando Sabino e Erico Verissimo, sentia-se muito insegura a respeito da própria obra. Isso de alguma forma o surpreendeu como leitor de Clarice?
Moser - Não sei se me surpreendeu, porque eu conheço muitos escritores. Eu próprio sou escritor, tenho amigos no ramo, e todo mundo é inseguro, ninguém sabe se presta realmente. Você precisa fingir que presta, todo dia tem de se convencer de que essa coisa que está fazendo tem algum interesse para alguém que não seja sua mãe. E isso é uma pretensão muito louca. E sobretudo com a maneira dela escrever, que era muito nova, muito inovadora, muito louca até. A diferença entre o louco e o gênio é muito tênue. No Orkut, por exemplo. Tem várias discussões em que as pessoas provocam umas às outras: “faça uma frase no estilo de Clarice”. E todo mundo manda, e o resultado é horrível, nada daquilo é Clarice, a prosa dela era uma coisa muito delicada. Acho que, para ela, se convencer todo dia de que essa coisa nova, desafiadora, era algo que realmente prestava, devia ser um processo exaustivo. A Maçã no Escuro ficou cinco anos sem editor, qualquer um teria a confiança abalada.
Cultura – O senhor cita no livro Caetano Veloso, que fala sobre o momento em que descobriu Clarice lendo seus contos na revista Senhor e foi tomado pelo maravilhamento. A sua própria descoberta de Clarice também poderia ser expressa da mesma forma?
Moser – Com certeza. Gosto muito daquele texto do Caetano porque ele exprime o que não só eu mas acho que muita gente sente ao descobrir Clarice. Foi uma descoberta que me fez pensar e repensar essas grandes questões de que eu estava falando. Acho que ela deixa nas pessoas uma impressão diferente. Porque você pode gostar de muitos escritores, músicos, pintores, mas a relação que a gente tem com Clarice não é gostar. É amor. Eu a amo, não é uma coisa abstrata. Não é só admiração, sobretudo é amor. E é muito raro esse encontro, como encontrar uma pessoa amada. Você pode ir para a cama com quem quiser, mas amor não acontece todo dia. Eu acho que no caso dela era isso, como para mim, como para Caetano e tantos outros leitores. Eu fico muito feliz com esse encontro na minha vida. Foi um encontro que me deu muito.
Cultura – O amor por Clarice se estendeu de alguma forma também ao Brasil?
Moser – Eu já amava muito o Brasil. Mas conheci Clarice antes de conhecer o país. E por ela descobri muitas coisas no Brasil que eu não teria descoberto se apenas fizesse turismo, por exemplo. Descobri Pernambuco, que era a terra dela, e de que gosto muito, viajei a Alagoas, Brasília, Rio, São Paulo, todas essas cidades que tiveram alguma relação com ela, até a Porto Alegre, onde viviam os Verissimo, grandes amigos dela. Eles viveram juntos em Washington nos anos 1950. A dona Mafalda foi uma das grandes amigas da Clarice. É uma coisa muito boa descobrir um país por uma pessoa. Eu pretendia levar meus leitores americanos e europeus pelo Brasil com esse livro, mas também fui levado fisicamente pelo país.
Reportagem de Carlos André Moreira
Fonte: Zero Hora online, Caderno Culutura, 23/01/2010
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