quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Pequenos prazeres

Wilson Jacob Filho*



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[...] A SENHORA, DE MAIS DE 80 ANOS, PASSOU A DESCREVER COMO PEQUENOS PRAZERES SÃO UM BOM MOTIVO PARA LOUVAR A EXISTÊNCIA

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Era para ser uma conversa como as anteriores, curta e superficial, visando apenas tomar ciência dos últimos acontecimentos e planejar algum evento. Algo, porém, fez com que o assunto se encaminhasse para uma comparação entre suas prioridades atuais e as do passado e para como as mudanças de atitude podem ser decisivas para a manutenção da independência, visando o envelhecimento saudável.

Foi nesse instante que a metamorfose ocorreu. Os olhos ficaram mais brilhantes, a voz, mais firme, e a argumentação, mais convincente. Sem pestanejar, a delicada senhora, de mais de 80 anos, passou a descrever como seus pequenos prazeres são um bom motivo para louvar a existência.

Nada sofisticado nem excepcional. Tudo simples, como a vida pode e deve ser vivida, mormente nessa fase de longevidade. O separar dos remédios enquanto o café escorre do coador concorre com a atenção para que o leite não transborde ao ferver. Pequenos desafios, vencidos diariamente ao som do noticiário no rádio, buscando "assunto para conversar".

Tarefas de limpeza e arrumação de um ambiente prático demoram pouco, principalmente quando feitas com organização e objetividade. No meio da manhã, sempre há algo que precisa ser feito fora de casa: uma compra ou o conserto de um utensílio da casa, tudo é motivo para uma caminhada: "Nunca vou pelo caminho mais curto, pois não tenho pressa e sei que é bom andar".

Resolveu morar no litoral desde que considerou cumprida sua missão de cuidar dos pais e auxiliar no zelo dos netos. Sonho antigo de quem gosta de locais onde a vida transcorre com mais facilidade.

Os filhos, inicialmente temerosos, convenceram-se de que uma boa rede de amizades pode dar mais apoio do que a presença eventual dos parentes. Visita-os semanalmente, avisando sobre seus planos de permanência, itinerários e destinos.

Há muito decidiu comer em locais que servem por peso.

Mesmo sendo uma exímia cozinheira, fez essa opção por boas razões: "Lá encontro maior variedade de alimentos, o que me permite escolher o que mais me apetece dentre as coisas que fui orientada a comer".

Além disso, exercita a necessidade de escolher o restaurante, a composição do prato, o suco que melhor o acompanha.

Após o almoço, outra caminhada pelo calçadão. Senta-se nos bancos e contempla o mar, "como na primeira vez". Com frequência, um conhecido se detém para uma conversa agradável, uma novidade ou um cumprimento afetuoso. Preserva os amigos como um patrimônio.

Faz o possível para não ter compromissos desnecessários: hora de ligar para um filho, por exemplo. "Ligo quando tenho saudades e sei que podem me atender com calma. Tomo banho quantas vezes sentir vontade." Com isso, liberta-se, em parte, da ditadura do relógio.

Foi uma longa e agradável conversa. Saí com a deliciosa sensação de que o avançar da idade permite, a quem o desejar, obter prazeres onde antes só se reconheciam deveres.
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*WILSON JACOB FILHO é professor da Faculdade de Medicina da USP e diretor do Serviço de Geriatria do Hospital das Clínicas (SP)
FONTE: Folha online, 28/01/2010

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