quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

'Avatar' e o espírito do nosso tempo

Eugênio Bucci*


 Na estação de enchentes em São Paulo, as salas de cinema também se deixam inundar. De gente. A causa é Avatar, a superprodução dirigida por James Cameron (o mesmo de Titanic, aquele romance de aguaceiro e de naufrágio). Rios de espectadores deságuam com tal violência contra as bilheterias que estas, atônitas, precisam impor diques à correnteza: os ingressos estão esgotados. Então, obediente às leis da hidrodinâmica, a massa líquida faz redemoinhos e encontra veios alternativos para sua voragem: compra entradas por antecedência. Depois, retorna em torrentes para afogar todas as poltronas.

Avatar é um fenômeno cultural como não vemos há um bom tempo. Por trás dos óculos baratos que garantem o efeito tridimensional do espetáculo, a freguesia contempla a consolidação das fantasias do nosso tempo, que misturam tecnologia, amor adolescente, engenharia genética, jogos eletrônicos e congraçamento transcendental com a natureza. Avatar também é um passatempo banal, claro, mas não é só isso. É uma síntese do pensamento político da moda, legitimada pela caudalosa acolhida que vem recebendo, tanto em São Paulo como em cidades onde não chove tanto assim.

O pensamento político da moda herda algumas utopias ancestrais. Ele incorpora, como já foi observado, o mito do bom selvagem, que embevecia o olhar dos europeus diante dos nativos do Novo Mundo. Agora, porém, o bom selvagem habita não outro continente, mas outro planeta, onde as raízes das árvores tecem conexões com todo o ecossistema. Os seres desse mundo carregam, nas tranças do cabelo, uma espécie de cabo USB, como bem definiu um jovem jornalista que viu o filme comigo. Plugando o seu "cabo USB" a cavalos de seis patas e a répteis voadores, os neosselvagens comandam-nos por ondas cerebrais. O novo bom selvagem sabe-se uma célula de um organismo vivo maior que ele, uma "Gaia" cintilante, uma internet com neurônios e clorofila.

Nesse lugar fantástico, a natureza é sujeito político. Ela é capaz até mesmo de ter consciência e agir segundo sua vontade. Conclamada, ela transforma sua consciência difusa ("consciência em si") em consciência ativa ("consciência para si") e parte para a guerra contra aqueles que pretendem dominá-la e explorá-la. Ou seja, quem assume a causa universal do "bem" não é mais uma nação, um povo ou uma classe social, mas a própria natureza. O humanismo converte-se em ambientalismo cibernético e esse cyberambientalismo é a base do ideário que anima as plateias. Elas acreditam que natureza e tecnologia encontrarão um ponto de equilíbrio harmonioso. Elas choram no cinema.

As contradições da nossa era também aparecem na tela. A ciência, embora financiada pelo dinheiro, termina por se insurgir contra a face mais cruel do capital. No modelo dramático de Avatar, o extrativismo que desrespeita o meio ambiente é "do mal" - e a ciência que se opõe à razão econômica é "do bem". As contradições explicitam-se também na mocinha, a neosselvagem pura - um pouco Iracema, totalmente Pocahontas - que reza uma prece para cada animal que mata com fins pacíficos e, ao mesmo tempo, tem acessos de raiva, como qualquer adolescente neurótica, quando confrontada com uma mentira do seu príncipe encantado. A mocinha é "natural" e, não obstante, é também uma "urbanoide" histérica.

Vários chavões da ficção científica - que sempre é ficção política - marcam presença no filme. Seres construídos em laboratório desenvolvem sentimentos próprios, mais que vontade própria, e se voltam contra o criador, como o monstro do dr. Frankenstein ou o cyborg de Blade Runner. Desta vez, no entanto, com uma nota distinta: antes, os heróis eram os humanos; agora, não é bem assim. Aquilo que em Matrix era um pesadelo - a rede de computadores a serviço do poder numa sociedade administrada, sem saída - vira um sonho dourado, fluorescente e libertador, mas além dos nossos corpos de hoje. Cameron propõe um Éden de realidade virtual, onde a forma humana já não tem parte com a solução: ela é, antes, um estágio a ser superado, a ser deixado para trás, como aquele pedaço de cauda que o foguete descarta no espaço para seguir seu curso. No Eldorado de Cameron, o que há de mais humano em nós só poderá sobreviver na forma de novos seres, geneticamente modificados, mais aptos do que nós para a felicidade que sempre almejamos e que nunca alcançamos.

Parece discurso religioso - e é. Político e religioso. Avatar vislumbra um reino de amor além da extinção da própria humanidade. O novo sucesso de Hollywood anuncia um futuro pleno - e pós-humano.

Antes, os micróbios da Terra dizimavam os alienígenas (como em A Guerra dos Mundos). Agora, a natureza alienígena, "do bem", é que vai dar cabo dos homens de carne e osso para ver se deles resta algo de bom, mas em novos corpos, corpos mutantes. Certamente alguns dirão que, nessa fábula, a forma humana é apenas uma metáfora para o que temos chamado de ego: ou o sujeito se liberta da tirania do ego, ou ficará escravo, sem conhecer a si mesmo. Mas não é apenas isso. Em seu libelo contra o extrativismo e a ganância, o filme prega um paraíso edificado sobre a ideologia do politicamente correto, um mundo melosamente humano sem humanos, um jardim em que não há formigas, bicho-de-pé, arranha-gato nem gente de carne e osso.

Avatar é o céu das multidões em turbilhão, um altar para as crenças de uma humanidade descrente. É também uma historinha de amor como muitas outras - mas, como um relâmpago, vem fotografar o imaginário do nosso tempo. Quem quiser entender as fantasias políticas que restam a este nosso mundo açoitado por tempestades - fantasias um tanto mágicas, um tanto idílicas, bastante irracionais -, que vá ao cinema. Enquanto chove.
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*Eugênio Bucci, jornalista, é professor da ECA-USP
FONTE; Estadão online, 28/01/2010

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