Romancista diz que o escritor deve se abolir e interessar-se apenas pelo Outro
VIAGEM INTERIOR - O autor afirma que sua Dublin natal o acompanha em todos os lugares: "É saudade, não? Saudade é a minha palavra favorita"
NOVA YORK
Na sequência da entrevista, Colum McCann fala do impacto em todo o mundo do ataque ao World Trade Center; da solidão do ato de escrever: da Irlanda que carrega aonde quer que vá e no quer que escreva e das razões para continuar se dedicando à literatura.
Por que o 11 de Setembro despertou uma hipersensibilidade em todo o planeta, inclusive no cidadão comum?
Você podia atribuir um peso, um significado ou um poder a literalmente tudo o que acontecia. Tudo à sua volta, não importa o quê. Ir ao supermercado e ver as prateleiras de água mineral ou colírio vazias. Eu me lembro muito bem, no dia seguinte, de uma mulher num restaurante com mesas na calçada, na Terceira Avenida. Ela estava sozinha, diante de um bolo de chocolate. Ela me parecia estar decidindo se comer aquele pedaço de bolo era uma forma de encarar a vida. Ou não. Qual seria o significado de comer o bolo diante da morte de tanta gente perto dali? Ainda sentíamos o cheiro do atentado, a fumaça ainda soprava em nossa direção. E eu vi a mulher demorar a decidir se comia ou não. Ainda não sei se foi um momento bonito ou horrível. Então, era assim: todo tipo de coisa simples adquiria um novo significado. Um hidrante abandonado, por exemplo, lembrava os bombeiros mortos. E mesmo longe daqui, em outras partes do mundo, as pessoas queriam se sentir ligadas aos nova-iorquinos. Foi o maior momento de mídia global da história, não foi?
Quando está escrevendo, você sente a chamada "solidão do escritor"?
Escrever é solitário - e é preciso abraçar a solidão. Há que destruir parte de você, dizer: não sou mais um cara interessante. Este eu que está aqui não importa; estou interessado no Outro. Escrever boa ficção é diferente de escrever poesia. Poesia é sobre o olho. Ficção é sobre perder o olho. Antigamente, eu dizia que as duas não eram diferentes, pois ambas têm a ver com ritmo e som. Hoje entendo a diferença essencial. Eu amo a poesia, mas não consigo escrever poemas. Porque adoeço de tanta consciência.
Frequentemente você fala na musicalidade da linguagem. Trabalhou com adolescentes delinquentes no Texas e se embrenhou pelos subterrâneos de Manhattan para conhecer os homeless. Quando interage com mundos diferentes, qual a importância do ouvido para essa musicalidade?
É muito importante. Temos de perceber como as pessoas tratam de uma história e o que querem nos contar. Todo mundo quer lhe contar alguma coisa. Contudo, muitas vezes, no começo, é só bravata. É preciso por ouvir mais tempo para entender a narrativa. Arrogância é, de fato, medo. E poesia, na expressão, pode ser só asneira. A verdade da história das pessoas emerge se você ouvir com calma.
Você aprendeu isso trabalhando com os delinquentes juvenis do Texas, nos anos 1980?
Trabalhei nesse programa que consistia em levar os garotos, seis de cada vez, para o mato, para enfrentar a natureza. Eram garotos com muitos problemas. A gente chegava ao mato, a 60 quilômetros de qualquer lugar, e eu dizia: "Esta é sua nova casa." E eles começavam com os palavrões, " F*@#*, man!" Eu dizia: "Ok." Eu tinha uma barraca e anunciei: "Pessoal, a barraca vai ser desarmada em sete dias. Vocês não acreditam? Eu vou construir minha casa na árvore e recomendo que façam o mesmo. Ninguém vai dormir na minha casa, se quiserem ficar no frio e na chuva, problema de vocês." Eles continuavam com os palavrões, contavam piada sobre a minha casa patética, mal construída. Mas eu desarmei a barraca e eles ficaram surpresos. E começaram a tentar conversar comigo, enquanto construíam casas muito melhores. Um chegava e dizia: "Meu tio me estuprou." O outro: "Minha mãe cortou os pulsos." Eu respondia: "Não tem papo enquanto não construírem abrigo." Os dias passavam, semanas, e eles voltavam depois de terminar o trabalho. E o garoto sentava no chão comigo e explicava: "Meu tio me estuprou." Era o momento. Eles tinham conquistado o direito de contar sua história e eu tinha conquistado o direito de ouvir. Acho que há uma analogia aí no processo de escrever. O trabalho que você tem de fazer para a graça da trama emergir.
Como é que a Irlanda viaja com você, depois de tantos anos de estrada?
Eu vim para cá numa visita em 1982, depois em 1986 e fui morar no Japão por uns dois anos. Agora estou em Nova York há 20 anos. Você me dá licença para citar Joyce sem parecer um idiota? Numa carta a seu amigo e confidente Frank Budgen, ele disse: "Eu estou longe da Irlanda há tanto tempo que já ouço a sua voz em toda parte." É a saudade, não? Saudade é minha palavra favorita. Muito melhor do que nostalgia. Não tinha consciência disso e pode ser perigoso ficar alerta, mas suponho que eu estava tentando alargar as fronteiras do romance irlandês. Uma cigana na Eslováquia faz parte do romance irlandês. Uma mulher negra no Bronx faz parte do romance irlandês. Um bailarino gay russo, também." Acho que cresci numa geração que queria partir para o mundo. Não sabíamos, porém, que o mundo ia vir até nós. E teríamos de aprender a receber, nas ruas de Dublin, a gente que chegaria da Nigéria e da Bósnia. Então, respondendo melhor: a Irlanda viaja comigo; os romances são irlandeses porque é de lá que eu venho e não sei ser outro. Mas ganhar o National Book Award foi extraordinário porque é uma honraria americana.
Por que você escreve?
Boa pergunta; pode ser banal ou a mais profunda pergunta a se fazer. Acho que escrevo para fazer descobertas nos cantos que ninguém nota. Aprendi tanto cruzando os Estados Unidos numa viagem de bicicleta... Passei a primeira parte da minha carreira observando principalmente os despossuídos. Agora tenho prestado atenção nas pessoas de outras classes - seus terrores, suas dificuldades. O que une pessoas com vidas materiais diferentes. A mulher branca da Park Avenue e a mulher negra do Bronx. Será que a mulher privilegiada vai abrir os olhos? O mundo está cheio de gente ruim. Não sou sentimental; sei do que é capaz a natureza humana. Mas como é que a gente chega ao outro lado, depois de atravessar o horror? Parece ser o mais difícil. As pessoas pensam que esperança é fácil e sentimental. Se você toma conhecimento de toda a crueldade, do tormento e do luto que nos cercam, é fácil ficar paralisado. Ou dizer: "O mundo é uma merda, mas..." As reticências podem ser preenchidas. Eu lutei (solta um palavrão) tanto com o fim do romance! Desculpe a minha linguagem. Eu sabia que arriscava uma reação cínica. Talvez seja melhor usar o coração na manga do que ser o sujeito com a expressão triunfal de sarcasmo num canto. Samuel Beckett falava no revigorante ar do fracasso. Tentar de novo, fracassar de novo, fracassar melhor. O ato de escrever implica otimismo.
É se recusar a morrer?
Eu acho que sim.
Ficção Em Torno Do 11 De Setembro
Eis alguns títulos de obras ficcionais publicadas no Brasil que têm o atentado às torres do WTC em seus enredos:
Terras Baixas (Alfaguara, 2008), de Joseph O"Neill. Celebrizado, em parte, por integrar a lista de leituras de Barack Obama. Corretor holandês de Wall Street é forçado a mudar-se com a família para o Chelsea Hotel, após os atentados. Enfrenta as consequências pessoais e históricas do 11 de Setembro.
Os Filhos do Imperador (Nova Fronteira, 2008), de Claire Messud. Três amigos na faixa dos 30 anos processam o efeito dos atentados em suas vidas.
O Homem Em Queda (Companhia das Letras, 2007), de Don DeLillo. O título refere-se a uma das vítimas que saltaram das torres em chamas. Trama acompanha advogado sobrevivente, enquanto explora a natureza da violência do 11 de Setembro.
Sábado (Companhia das Letras, 2005), de Ian McEwan. Um dos mais celebrados romances sobre o pós-atentado. Neurocirurgião londrino confronta a ameaça do terror com o impulso de viver um cotidiano protegido.
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Reportagem de:Lúcia Guimarães
Fonte: Estadão online, 24/01/2010
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