CONTARDO CALLIGARIS*
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A viagem seduz os viajantes, mas seu desejo é nostalgia do que eles deixaram atrás
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NO SÁBADO passado, no aeroporto de Chicago, esperava o voo que me levaria de volta a São Paulo. Diante de mim, uma longa parede de vidro mostrava, além dos aviões estacionados, um pôr do sol glorioso e dilacerante.
Por alguma sabedoria (consciente ou não), meus companheiros de espera estavam quase todos sentados de costas para a janela. Alguns poucos, pela posição de seus assentos, teriam condição de contemplar o pôr do sol, mas não levantavam os olhos de seu notebook.
Oscar Wilde afirmava que o pôr do sol só passou a existir com as pinturas de William Turner, no começo do século 19; era um jeito de dizer que a natureza está lá desde sempre, mas é a arte que nos ensina a enxergá-la. Concordo. E há outras razões pelas quais o pôr do sol é uma experiência especificamente moderna.
Nos últimos 300 anos, atribuímos mais importância à existência individual de cada um do que à vida de grupos, tribos e nações, ou seja, salvo momentos vacilantes de fé em ressurreição ou reencarnação, nossa morte nos parece acabar com tudo o que importa. Somos, portanto, especialmente sensíveis ao fim do dia, cujo espetáculo acarreta consigo a lembrança dolorosa do fim de nossa jornada, que se aproxima.
A psicopatologia reconhece, aliás, a existência, em alguns indivíduos, de variações sazonais do humor: depressão no outono e no começo do inverno e, às vezes, exaltação maníaca na primavera. Pode ser que a alternância das estações, sobretudo onde elas são mais marcadas, longe do Equador e dos trópicos, produza mudanças no metabolismo. Mas pode ser, simplesmente, que a alternância das estações lembre o ciclo de nossa vida, e o outono seja o equivalente anual do fim da tarde de cada dia.
No caso do pôr do sol de sábado, em Chicago, visto da sala de espera de um aeroporto, era como se a iminência da viagem tornasse a experiência mais triste. Por quê?
Há um quadro de Jean-François Millet, que todo mundo conhece, "O Ângelus", pintado em 1859. Nele, um casal de camponeses, no meio da lavoura, ouve os sinos do ângelus vespertino (à distância, vê-se o campanário de uma igreja). Os sinos dizem que é a hora de rezar e que o dia acabou.
Deveria emanar do quadro uma sensação intensa de paz: seu ofício cumprido, o casal logo voltará para o calor pobre, mas digno, de seu lar. Mas esse retrato de uma vida simples e reta sempre foi, para mim (e não só para mim), estranhamente aflitivo. Acontece que o ângelus vespertino é um toque de paz só para quem tem uma casa para a qual voltar. Para os outros, é o sinal melancólico de uma perda sem remédio.
Tudo bem, viajei muito. Várias vezes, ao longo da vida, mudei de língua e país, mas o que importa aqui não são os acidentes de minha história. A modernidade se define pela viagem, pela decisão de não aceitar que o lugar onde nascemos seja nosso destino -por exemplo, pela vontade de deixar o campo e ir para a cidade. É assim desde o século 13 ou 14, quando a gente começou mesmo a circular -primeiro pela Europa, depois pelos mares e por terras incógnitas e agora pelos céus e mundo afora.
Na "Divina Commedia" (que é uma enciclopédia da modernidade incipiente), Dante descreve assim o fim da tarde (minha tradução em prosa de "Purgatório, 8, 1-6"): "Já era a hora em que o desejo volta aos navegantes, e seu coração é enternecido pela lembrança do dia em que disseram adeus a seus doces amigos; é também a hora que fere de amor o novo viajante, se ele ouve de longe um sino que parece chorar o dia que está morrendo."
Pelo gênio de Dante, o desejo dos navegantes não é, como se esperaria, o anseio de novas terras no horizonte de sua viagem. Claro, a viagem os seduz, mas seu desejo é nostalgia do que eles deixaram atrás, do que perderam por se tornarem viajantes.
E perderam o quê? Sobre que perdas se funda a subjetividade moderna -a nossa, livre e andarilha? Este é o custo básico da liberdade e da autonomia que prezamos acima de tudo: a gente renuncia, antes de mais nada, ao calor do lar -aquele lar que nos esperaria ao fim de cada dia, se tivéssemos ficado no campo, com os camponeses de Millet.
Alguém dirá: que drama é esse? Perde-se a casa dos pais, mas a gente faz outra. Não tem um ditado que diz: "Quem casa quer casa?".
Tem, sim, e, justamente, uma razão pela qual casar-se é tão complicado, é que a gente casa porque quer não "uma" casa, mas "aquela" casa, a que a gente perdeu e nunca vai reencontrar. Enfim, tudo isso escrito enquanto, justamente, volto para casa.
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*Psiquiatra. Escritor. Colunista da Folha
*Psiquiatra. Escritor. Colunista da Folha
ccalligari@uol.com.br
FONTE: FOLHA ONLINE, 28/01/2010 -http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2801201023.htm
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